Ricardo de São Vítor
TRATADO SOBRE OS QUATRO GRAUS
DA CONSUMAÇÃO DA CARIDADE
Iª PARTE
"Ferida estou pela caridade".
A caridade obriga a falar da caridade. Entrego-me prontamente ao pedido da caridade, doce e plenamente deleitável, de falar do amor. Feliz matéria, e muito copiosa, que de nenhum modo pode produzir seja o tédio no escritor, seja o fastio no leitor. O que a caridade prepara possui sabor sem medida para o paladar do coração,
"ainda que um homem dê todas as riquezas de sua casa pelo amor, ele as desprezará como um nada".
Cant. 8, 7
Grande é a força do amor, admirável é a virtude da caridade. Nela há muitos graus, e neles há uma grande diferença. E quem os poderá distinguir ou mesmo enumerá-los dignamente? Nela estão os afetos da convivência, da afinidade, da consangüinidade e da fraternidade da humanoidade e neste mundo ainda há muitos outros. Acima de todos estes graus do amor, porém, há aquele amor ardente e fervoroso que penetra o coração e inflama o afeto e que transpassa a própria alma até a medula, de modo que possa verdadeiramente dizer:
"Ferida estou pela caridade".
Investiguemos, portanto, o que seja aquela supereminente caridade de Cristo que transcende ou extingue o amor dos pais, dos filhos e da esposa e, mais ainda, transforma em ódio o amor pela sua própria alma. Ó veemência do amor, ó violência da caridade, ó excelência, ó supereminência da caridade de Cristo!
É isto, irmãos, o que agora pretendemos, é disto que queremos falar, sobre a veemência da caridade, sobre a supereminência da perfeita emulação. Já sabeis suficientemente que uma coisa é falar da própria caridade, outra falar da sua consumação. Uma coisa é falar sobre ela, outra de sua violência.
Quando considero a obra da violenta caridade, encontro qual seja a veemência da perfeita emulação. Vejo, pois, alguns feridos, outros atados, outros desfalecidos, outros carentes, não, todavia, da caridade. A caridade fere, a caridade ata, a caridade faz desfalecer, a caridade produz carência. Qual destas coisas não é admirável, qual delas não é violenta? Estes são os graus pelos quais deveis todos aproximar-vos daquela que tanto cobiçais. Ouvi sobre ela, e anelai-a, a ela para quem se volta com tanta veemência a vossa ambição.
Desejais ouvir da caridade que fere? Lede no Cântico:
"Tu feriste o meu coração, irmã minha esposa, tu feriste o meu coração com um só de teus olhares, e com um cabelo de teu pescoço".
Cant. 4, 9
Quereis ouvir sobra a caridade que ata? Lede em Oséias:
"Haverei de trazê-los nos laços de Adão, nos laços da caridade".
Os. 11, 4
Quereis ouvir sobre a caridade que desfalece? Lede no Cântico:
"Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que, se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que desfaleço de amor".
Cant. 5, 8
Quereis ouvir sobre a caridade carente e conduzindo à carência?
"Carece a minha alma",
diz o Salmista,
"na tua salvação, e sobre espera na tua palavra".
Salmo 118, 81
A caridade, portanto, produz a carência, conduz ao desfalecimento. A caridade possui laços, a caridade produz ferimento.
Mas o que são estes laços de Adão, nosso primeiro pai, senão os dons de Deus? O que são estes laços de caridade, senão os benefícios de Deus? Os bens da natureza, da graça e da glória. Estes laços de beneficiência o ataram e constutuiram-no em devedor da benevolência. Criou a natureza, concedeu a graça, prometeu a glória. Eis os três laços, os dons do coração, os bens da justificação e os prêmios da glorificação. Sabemos que um laço tríplice dificilmente é rompido; rompeu-se, todavia. Pelo mundo o homem esfriou o seu jugo e rompeu os seus laços. Usou então ainda o Senhor de sua mão forte para multiplicar sobre nós seus laços de caridade, para que assim nos pudesse abraçar mais estreitamente e nos enredasse para o alto. Concedeu-nos os seus bens, por nós carregou os nossos males, para que assim fossemos atados por ambos, tanto pelos bens que nos concedeu como pelos males que por nós carregou. Deste modo os laços da caridade fizeram cativa à catividade, generosamente concedendo seus dons aos homens e por eles sustentando seus males. Quão pessimamente forte és tu, a quem tantos laços de caridade não conseguem prender, quão pessimamente livre és, a quem não se consegue romper os direitos desta catividade!
Mas eis que voltamos àquele grau de amor que colocamos em primeiro lugar, ao qual o chamamos de vulnerante. Não te parece que és atingido em teu coração quando aquele aguilhão de fogo de amor penetra medularmente na mente do homem, atravessando o afeto de lado a lado, de tal modo que o torna inoperante de coibir ou dissimular o calor de seu desejo? Arde em seu desejo, ferve em seu afeto, aquece-se, anela, geme profundamente e com longos suspiros, são estes para ti sinais certos da alma ferida, os gemidos e os suspiros, o vulto pálido e consumido. Este grau, porém, possui intervalos e cede pelos cuidados dos afazeres que lhe são incumbidos. Os febricitantes acometidos por este figura, costumam ora queimar mais fortemente, ora descansar de alguma forma por ocasião de suas ocupações. Porém, depois de um pequeno intervalo, queimam novamente, o ardor retorna mais fervente e o ânimo, já recobrado, incendeia-se mais fortemente e queima com maior veemência. Freqüentemente assim afastando-se e sempre retornando maior do que si mesmo, gradativamente abranda o ânimo, quebra e exaure as forças até que subjuga e sujeita completamente a alma a si, e pela memória ao seu jugo a ocupa toda, a envolve toda, a obriga toda, de modo que não possa esquecê-la ou pensar em outro, e já passa do primeiro ao segundo grau.
Dissemos que o primeiro grau fere, que o segundo ata. Porventura não está verdadeiramente e sem nenhuma contradição a alma atada quando não pode esquecer-se desta única coisa ou não pode meditar em outra? O que quer que ela faça, o que quer que ela diga, ela sempre revolve o mesmo em sua mente, e retém o mesmo por uma memória perene. Dormindo, sonha; acordada, retorna a isto a toda hora. Fácil será considerar aqui, conforme penso, como este grau superior transcende o anterior, que não permite a mente do homem repousar em nenhum momento. Corretamente dissemos, portanto, que o grau anterior é o que fere, enquanto que o segundo grau ata.
Freqüentemente também ferir é menos do que atar. Quem desconhece o quão freqüentemente ocorre que o soldado envolvido no conflito da batalha, atingido e ferido, foge da mão de quem o persegue e, mesmo com a ferida que lhe foi infligida, escapa, todavia, em liberdade? Mas depois que no tumulto da batalha o soldado atingido é tombado, assim tombado é preso e preso é conduzido, e conduzido é encarcerado. Encarcerado são-lhe postas cadeias e é atado e então passa a ser mantido inteiramente cativo.
Qual destas coisas, pergunto, é maior, ou qual é mais molesta? Não é mais tolerável que, embora ferido, possa fugir e, portanto, seja livre, do que cativo e atado seja mantido em cativeiro? Este grau, portanto, não é como o outro que recebe intervalos, mas segundo o costume da febre aguda a alma queima por um contínuo ardor e pelo jugo de seu desejo queima por um calor que nem de dia nem de noite permite que a alma repouse. Deste modo, assim como aquele que está deitado em um leito ou que está preso por cadeias não podem afastar-se daquele lugar a que estão confinados, assim também quem está absorvido por este segundo grau da violenta caridade o que quer que faça ou para onde quer que se volte não pode desviar-se daquela única e íntima solicitude de seu cuidado.
No primeiro grau podemos e devemos repelir o ímpeto dos maus desejos não resistindo, mas declinando, não tanto lutando quanto fugindo, se formos sempre solícitos em refugiarmo-nos por uma mente precavida a meditações ou ocupações úteis e honestas, para que cumpramos o que está escrito:
"Fugi da fornicação".
1 Cor 6, 18
A violência do primeiro grau pode ser declinada, não superada, mas a violência do segundo grau não pode ser vencida nem pela luta nem declinada pela fuga. Lemos, de fato, nos salmos, a voz do homem cativo e gemente, desesperado da fuga:
"Não há mais fuga para mim, e não há mais quem peça a minha alma".
Salmo 141, 5
Mas freqüentemente, como vemos, os que não podem fugir podem redimir-se, comprando a sua liberdade. Quando, portanto, não podemos repelir a tentação pela virtude, ou declinar dela pela prudência, devemos pela obra da misericórdia e da obediência redimir-nos a nós mesmos, e romper o jugo da servidão. Estas são as riquezas verdadeiras e próprias das quais está escrito:
"A redenção da alma do homem são as suas riquezas".
Prov. 13, 8
Mas quando o amor tiver crescido a este segundo grau de veemência, o que é, pergunto, ao que ele possa mais se estender? O que pode ser mais veemente do que essa veemência, se não pode ser superada, se não pode ser declinada? Se é inteiramente insuperável, se é inteiramente inseparável, o que pode ser mais veemente do que essa veemência? Se não pode ser superada por outro afeto, é o sumo, e se inere inseparavelmente, é sempiterno, e o que pode ser mais violente do que a sua violência, se é sumo e sempiterno?
Mas uma coisa é ser sumo e outra é ser único, assim como uma coisa é estar sempre presente e outra é não admitir de nenhum modo outro consorte. Podemos, de fato, estar presentes e ter muitos sócios, e entre todos ter inclusive algum lugar superior. Vês, portanto, quanta quantidade de supereminência ainda lhe falta para crescer para que, já sendo sumo, possa também ser único?
O amor, deste modo, sobe ao terceiro grau de violência quando exclui todo outro afeto, quando nada ama além de que uma só coisa ou por causa de uma só coisa. Neste terceiro grau da violenta caridade nada pode satisfazer além de uma só coisa, assim como nada lhe pode causar sabor senão por causa de uma só coisa. Uma só coisa ama, uma só coisa anseia, uma só coisa cobiça. A esta anela, nesta suspira, por ela se abrasa, nela repousa. Um só é aquilo em que se refrigera, um só é aquilo em que se sacia. Nada lhe é doce, nada lhe é saboroso se não for temperado por esta única coisa. Qualquer coisa que se lhe ofereça além, tudo o que lhe ocorrer espontaneamente, é imediatamente rejeitado, prontamente é conculcado tudo o que não concorre para o seu afeto, ou que não sirva ao seu desejo.
Quem, porém descreverá dignamente a tirania deste afeto? Como expulsa todo desejo, como exclui toda preocupação, como oprime violentamente todo exército que não vê servir à sua concupiscência? O que quer que aja, o que quer que faça lhe parece inútil, aliás, intolerável, a não ser que conduza e concorra ao único fim de seu desejo. Podendo fruir do que ama, parece igualmente possuir a tudo. Sem ele todas as coisas lhe são horríveis, tudo lhe é sórdido. Se dele não puder fruir o corpo desfalece e o coração se consome. Não recebe conselho, não concorda com a razão, não admite nenhuma consolação.
No segundo grau pode ainda ocupar-se dos negócios alheios pela ação, mas não o pode pelo pensamento, porque de nenhum modo pode esquecer-se daquele a quem ama. Neste grau, porém, a mente consumida e desfalecida pela grandeza do amor, assim como não pode meditar em outra coisa, assim também nem pode operar outras coisas. O grau anterior envolveu os pensamentos, este também dissolve as ações. Aquele ata o pensamento, este enfraquece a ação. Naquele grau ainda temos as mãos e os pés livres, e segundo o costume dos febricitantes podemos estender ou mover isto ou aquilo, porque pelo arbítrio do discernimento ainda podemos e devemos estendê-los e exercê-los na boa obra. Porém neste grau a grandeza do amor, à semelhança do cansaço, enfraquece mãos e pés, para que dali em diante a mente nada mais faça arbitrariamente. A mente, neste estado, permanece quase imóvel, e nunca se move nem pelo pensamento nem pela ação, a não ser ao que o desejo a conduz ou o afeto a impele.
Nos maus desejos ainda no primeiro grau, como antes foi dito, pode-se fugir pelo estudo da circunspecção. No segundo grau não há para onde fugir de modo algum, mas pelas boas obras ainda podemos nos redimir. No terceiro grau, porém, quem pode algo contra esta cidadela, que gênero de remédio poderá haver, quando já não é possível meditar no necessário, nem se pode operar o útil? Lemos desfalecerem tanto o coração como o corpo, o corpo consumido e o coração turbado:
"Meu coração está conturbado, abandonou-me a minha força".
Salmo 37, 11
Sob este artigo de necessidade não encontro nenhum outro gênero de remédio do que voltar-se para a clemência divina e implorar a sua misericórdia. Se estás totalmente desfalecido, se não tens mãos e pés livres, certamente ainda tens língua e podes mover os lábios. Se, portanto, não foi deixado nenhum lugar de fuga para o teu engenho, clama Àquele que tudo pode.
Vês, como suponho, o quanto já cresceu aquela força do amor, quando pelo exercício subiu à veemência deste terceiro grau. Admirável será se houver ainda algo ao qual possa subir ainda mais. No primeiro grau transpassou o afeto, no segundo atou o pensamento, no terceiro dissolveu a ação. O afeto é cativado no primeiro, o pensamento no segundo e a ação no terceiro. Nisto está todo o homem, e o que pode haver mais do que isso? Se, portanto, foi cativado tudo o que é o homem, o que mais pode ser-lhe feito? Se aquela força do amor a tudo possui, se a grandeza do amor tudo absorve, em que, pergunto, poderá dilatar-se ainda mais? Se tudo obteve, não há o que mais possa pretender.
Mas o que diremos se tudo obteve, mas tudo não lhe é suficiente? Que diremos se tudo está em seu poder, mas este tudo não pode satisfazer ao desejo? Certamente é incomparavelmente maior o que o homem não pode do que o que o homem pode. Ambas estas coisas podem ser desejadas, o que o homem pode e o que o homem não pode. Vês, portanto, quão infinito é aquilo em que o desejo pode se estender, mesmo depois de ter alcançado este terceiro grau.
O quarto grau da violenta caridade é, portanto, quando o desejo da alma fervorosa já não pode ser satisfeito de nenhum modo. Este grau, por já ter excedido os limites da possibilidade humana, não conhece, como os demais, términos para o seu crescimento, porque sempre encontra o que ainda possa cobiçar. O que quer que haja, o que quer que faça, não satisfaz o desejo da alma ardente. Tem sede e bebe, e no entanto, bebendo não extingue a sua sede, mas quanto mais bebe, mais ainda tem sede. A sede e a fome da alma ávida, ou melhor, insaciável, não é satisfeita, mas provocada quando seu desejo é alimentado pelo desejo. Neste estado o olho não se sacia pela vista, nem o ouvido se satisfaz com o ouvir, (na medida em que fala a um ausente ou vê um presente). Mas quem poderá explicar dignamente a violência deste grau supremo ou dignamente considerar a sua supereminência? O que poderá penetrar mais profundamente o coração do homem e atormentá-lo mais fortemente e molestá-lo mais veementemente? O que poderá ser mais molesto ou mais cruel quando pode moderar sua sede resistindo ou extinguir inebriando? Admirável e miserável voracidade, que por nenhuma diligência é expulsa, nem sedada por nenhuma satisfação. Doença irremediável e inteiramente desesperada, onde sempre se busca o remédio e nunca se o encontra e onde, ao contrário, tudo o que se presume ser remédio da saúde, se transforma em aumento do furor.
Este é aquele grau que conduz à carência, e que já faz desesperar o remédio. E assim como o doente desenganado, que já como que jaz entre os mortos, não tem mais o que fazer ou o que esperar do outro, retirado todo cuidado médico e abandonado a si mesmo, somente ainda anela pelo espírito e a cada momento como que se aproxima do desenlace. Já exala o último suspiro, e ao que faz consigo ou ao que lhe é feito não presta atenção nem adverte. Assim também quem anela pelo ardor deste fervoroso desejo o que quer que faça não lhe pode trazer remédio ou servir de consolação. Quando qualquer consolação que se use não atinge a alma, está de certa forma entre os mortos os quais não sentem de nenhum modo aquilo que se lhe fazem.
Nos maus desejos, porém, quando a mente humana é violentamente atirada a este estado, nada mais resta senão que outros orem por ela, para que talvez o Senhor, considerando a fé deles, restituindo-o à vida, o entregue à sua mãe, o qual é poderoso até para suscitar das pedras filhos de Abraão e quantas vezes o desejar conduz ao inferno e traz de volta. Neste estado o amor freqüentemente se transforma como que em uma insanidade, a não ser que uma admirável prudência e uma igual constância refreie o seu ímpeto. Neste estado freqüentemente surgem iras entre os amantes, freqüentemente cometem-se rixas, e como não há verdadeiras causas de inimizade, fingem falsos e freqüentemente sequer verossímeis. Neste estado o amor freqüentemente se transforma em ódio, quando nada pode satisfazer ao desejo mútuo. Daqui vem o que freqüentemente vemos em alguns, que aquilo pelo qual se parecem mais ardentemente se amarem, por isto mesmo se perseguem depois com o ódio mais veemente; ao contrário, o que é mais admirável, freqüentemente em um só e mesmo tempo se odeiam de um tal modo que, todavia, não deixam de arderem pelo desejo, e se amam de tal modo que, todavia, não desistem de se perseguirem como que pelo ódio. Assim amando odeiam, e odiando amam e de um modo admirável, ou antes miserável, do desejo cresce o ódio e do ódio o desejo. E o fogo e o granizo misturados são conduzidos por igual, quando nem o ardor do desejo pode dissolver ao gelo do ódio, nem o granizo da detestação pode extinguir o fogo da concupiscência ardente. Acima de seu modo, antes, acima de sua natureza, o fogo cria força na água, porque o incêndio do amor mais cresce pela contradição do outro do que poderia enfraquecer-se pela mútua paz.
Fonte: www.cristianismo.org.br
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