quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O que pedes à Igreja? A Fé!

Sermão por ocasião da procissão do voto de Luís XIII
Saint-Malo, 15 de agosto de 2008

Bispo Bernard Fellay
Superior Geral da FSSPX

[Para conservar a este sermão o seu caráter próprio, o estilo oral foi mantido. Apenas os subtítulos e as referências escriturísticas foram acrescentados. (Nota de DICI.org).]

Meus caríssimos irmãos,

Nós estamos aqui para cumprir o voto do rei Luís XIII. Poderíamos dizer que, mais do que nunca, é preciso tentarmos cumprir esse voto não somente por meio de uma procissão, não somente durante uma aclamação da Santíssima Virgem Maria pela qual nós a reconhecemos como nossa Rainha e nossa Mãe, mas fazendo-a entrar verdadeiramente em nossas vidas particulares, familiares e sociais. Mais do que nunca devemos viver nessa intimidade com a Santíssima Virgem Maria, mais do que nunca temos necessidade do seu patrocínio, da sua proteção.
Pois nós vivemos tempos muito especiais. Se quiserdes, podemos arriscar esta palavra: nós vivemos tempos apocalípticos, não para nos comprazermos no fantástico, mas muito simplesmente porque aquilo que nós vivemos corresponde ao que é descrito nesse livro da Escritura Santa que é o Apocalipse. É verdade que, tomado num sentido amplíssimo, o Apocalipse descreve o que se passa na Igreja desde a morte de Nosso Senhor até o fim dos tempos. Num sentido amplo, devemos considerar este livro como a descrição da vida da Igreja. Certos autores, e mesmo santos, viram nele diversas interpretações e tomaram certos capítulos para dizer: «Este capítulo vale para tal época; aquele, para aquela». Nós sabemos que o futuro nos escapa, e que é sempre perigoso querer aplicar a Palavra de Deus, que nos ultrapassa, a eventos particulares. É mais fácil, uma vez que as coisas tenham acontecido, dizer que tal parte se cumpriu, que tal profecia estava destinada a tal momento. É um tema delicado, por isso não queremos nos entregar a esse tipo de aplicação.
Permanece o fato, todavia, de que aquilo que nós vivemos – no nível da sociedade humana e da Igreja – não é normal, sai completamente do habitual e do ordinário. Nós estamos verdadeiramente num período em que tudo é transtornado, em que se ataca até mesmo os princípios mais profundos. É um período inverossímil. Gostaríamos de poder dizer que isso não pode ser, que não deve existir. Entretanto, é o que nós vivemos, é uma realidade! E não temos o direito de usar a fé contra a realidade. Se é real, é real! Nós temos as promessas de Nosso Senhor: «As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja» (Mat., XVI,18). Nosso Senhor é a Verdade, essa palavra é e permanece verdadeira. Porém, quando olhamos para a aplicação concreta, temos verdadeiramente vontade de dizer que os teólogos posteriores ao Vaticano I – o concílio onde foi afirmado com tanta solenidade o primado do papa, a infalibilidade do soberano pontífice –, que esses autores teriam certamente considerado como impossível, inconcebível aquilo que nós vivemos.

A mensagem de Nossa Senhora em La Salette

É muito interessante recordar que Nossa Senhora, em La Salette, anunciou uma época terrível para a Igreja. Essas previsões, que foram transmitidos a Roma, foram postas no Índex, de tão terríveis que eram! Essa colocação no Índex não significa que fossem falsas. Durante muito tempo, quando alguém fazia referência a Nossa Senhora de La Salette, logo era posto no seu devido lugar com uma afirmação sumária: a Igreja condenou! A Igreja simplesmente interditou a leitura pela colocação no Índex, mas isso não quer dizer que aquilo fosse falso. Nos últimos anos, precisamente desde 3 de outubro de 1999, foram reencontrados os manuscritos originais de Mélanie e os de Maximin. Estavam nos arquivos, e ainda estão nos arquivos, do Santo Ofício, que é hoje chamado de Congregação para a doutrina da fé. Lá reencontraram todas as comunicações: as de Mélanie, que enviou ao papa o que a Santa Virgem disse a ela, o célebre Segredo de La Salette. Temos igualmente o texto de Maximin que, também ele, recebeu segredos de Nossa Senhora. Foram todos consignados, e foram publicados num período relativamente recente. Pois bem, constatamos que os textos que haviam circulado pelo público eram totalmente fiéis e correspondiam bem àquilo que foi dito. E o que disse a Santa Virgem em La Salette? Ela anunciou um período terrível para a Igreja, chegando a declarar: «Roma vai perder a fé». Ela afirmou: «A Igreja será eclipsada. Roma se tornará a sede do Anticristo.» Palavras extremamente fortes! Há também reprimendas muito severas ao clero. Houve desde então uma época na qual essas coisas se verificassem de maneira mais precisa do que a nossa? Desde La Salette até hoje, não são esses 40 últimos anos os que mais se aproximam dessa descrição? Palavras fortes que não ousamos fazer nossas. Nós não ousamos dizer hoje: «Roma perdeu a fé». Nós dizemos que esse ou aquele cardeal perdeu a fé, ou que tal bispo se mostra como não tendo mais a fé. Ainda hoje nós não ousamos dizer que Roma perdeu a fé.

Ora, parece-me que não é, contudo, sem razão que nós vemos muitas coisas que são feitas ou publicadas em Roma e que não são mais a expressão da fé católica. Podemos chegar até a dizer que assistimos à aparição de uma Nova Igreja, uma Igreja que se pretende católica, mas que não tem mais nada de católico. Ela tem os seus ritos, as suas leis, a sua bíblia, a sua maneira de fazer as coisas, mas não é mais aquilo que a Igreja tem ensinado há séculos. Essa Igreja Nova, nós a chamamos de “Conciliar”, ou antes, é ela própria que se faz chamar assim. Porém, é quase impossível distingui-la da verdadeira. É um pouco como um câncer generalizado. O câncer numa pessoa não se identifica com essa pessoa, não é a verdadeira natureza dela, é uma doença, mas que de fato está ali nela. Quando o câncer se reduz a um tumor, podemos contorná-lo, para o excluir; mas, quando as metástases se espalharam pelo corpo inteiro, o médico se detém, pois ele constata que o câncer está por toda parte. Ele não ousa mais pegar o seu bisturi, para extirpar o corpo estrangeiro que se encontra nessa pessoa.

A Pascendi de São Pio X e a Humani Generis de Pio XII

É uma imagem que tenta exprimir, mais ou menos bem, um mistério, o grande mistério pelo qual vemos, na Igreja, esse corpo estrangeiro que propaga outra coisa que não a Fé Católica, que quer ser amigo de todas as religiões, que pretende que podemos nos salvar em todas as religiões, que o Espírito Santo utiliza como meio de salvação todas as religiões. Tudo isso é falso, isso nunca foi o ensinamento da Igreja! Nós temos hoje uma Igreja que promove aquilo que foi condenado faz menos de 50 anos. E nós vemos que isso se produziu durante o concílio Vaticano II. Um concílio que não tanto inventou novidades ele próprio, mas que consagrou e legalizou aquilo que foi condenado como erro 10 anos antes. A esse respeito, eu vos aconselho muito reler a encíclica de Pio XII Humani Generis, sobre os erros modernos. É a última grande condenação dos erros na Igreja. Ela se parece um pouco com a Pascendi de São Pio X, que condenou o modernismo, mas São Pio X conseguiu na época neutralizar o inimigo. Ele disse bem que esse inimigo estava no interior. Já no início do século XX, ele denunciou o inimigo da Igreja como trabalhando no interior da Igreja. Pois então! Esse trabalho de sapa continuou, e nós estamos hoje nesta situação dificílima na qual, de um lado, somos obrigados por necessidade, para ser salvos, a manter a nossa fé na Igreja – Igreja que não pode permanecer uma abstração, pois ela é uma realidade concreta, visível, é a Igreja Católica –, e, ao mesmo tempo que confessamos a nossa fé na Igreja, em tudo o que ela é e foi, nós devemos nos desligar, nos separar, nos opor a um corpo estrangeiro, um corpo novo que se quer novo a si próprio, que se propagou durante 40 anos, e que carrega frutos de morte.

Essa revolução na Igreja causou mais danos à Igreja do que as guerras, as perseguições. Muito mais mortes espirituais, mais abandonos, mais perdas para a Igreja – nas congregações religiosas ou entre os padres – foram causados por essa revolução interna do que pelas guerras, pelas perseguições… Mesmo a perseguição comunista não conseguiu causar tantas mortes espirituais como essa crise inaugurada pelo Vaticano II. Também combatemos, nos defendemos contra esse veneno, que não é o espírito da Igreja Católica. A infelicidade é que, até nas mais altas esferas do governo da Igreja, encontramos os propagadores do erro. Mas eles não disseminam essas novidades de maneira uniforme e constante.

Paulo VI fala da «fumaça de Satanás» dentro da Igreja

Assim Paulo VI, que, imediatamente após João XXIII, instalou essa nova religião, é capaz de dizer que na Igreja há forças, ideias que não são da Igreja. Ele chega mesmo a afirmar que por uma brecha a fumaça de Satanás entrou na Igreja. Uma palavra dessa nos dá arrepios. Ele dirá a Jean Guitton temer que esse pensamento estranho à Igreja triunfe. Foi ele mesmo quem o disse, mas acrescentando que nunca seria a Igreja, pois sempre haverá uma parte, por mais infinitesimal que ela seja, que permanecerá. É Paulo VI quem fala, aquele que fez a missa nova e que segue firme com ela, aquele que lançou o ecumenismo! Que mistura!

Há igualmente este fato de que não se fala muito: quando o mesmo Paulo VI publicou a missa nova, o cardeal Journet foi vê-lo, pois a definição que se encontrava na introdução dessa nova missa era francamente herética. O cardeal Journet foi então ver o papa, e Paulo VI chorou diante dele dizendo-lhe que havia assinado sem ler. Eis como passou a missa nova, com um papa que confiava no seu colaborador, Bugnini, sem nem mesmo ler os textos que ele lhe apresentava! Claro que essa definição foi corrigida, mas não foi corrigida a missa. É um exemplo das irregularidades que se multiplicaram e que demoliram a Igreja. Tomai a comunhão na mão! O texto que introduziu essa prática na Igreja é, na realidade, uma condenação. Esse documento diz que isso não é permitido, mas que em algumas regiões o costume foi introduzido e que ali pode-se continuar. E é assim que a comunhão na mão foi espalhada pelo mundo inteiro. Quanto à penitência, há um texto que diz que a penitência é uma coisa muito boa, que é preciso fazer penitência – é o texto que trata das indulgências – mas acabamos, ao término da leitura dele, sem saber mais o que é fazer penitência. E assim por diante, podemos tomar os documentos uns após os outros. É uma confusão inverossímil!

João Paulo II denuncia uma «apostasia silenciosa»

O papa seguinte João Paulo II, aquele que fez Assis, lamentou-se no início do seu pontificado pelo fato de que o erro, a heresia fosse disseminada a mãos cheias na Igreja, de que o cristão de hoje fosse tentado pelo agnosticismo. Esse papa, no fim de sua vida, deplorará uma «apostasia silenciosa». Se ele pôde se lamentar assim, é que ele ainda tinha um olhar católico, e no entanto ele que causou o desastre inominável de Assis.

Vêde, meus caríssimos fiéis, eu vos dou esses elementos para mostrar-vos como essa situação é difícil, o quanto nós precisamos abordar essa realidade com muita prudência, recordando sempre que tocamos aí num mistério. O mistério é uma verdade que nos ultrapassa, é uma realidade que podemos constatar, mas da qual não temos a chave explicativa. Esse mistério que nós constatamos assemelha-se ao mistério da Paixão de Nosso Senhor. Os apóstolos, todos os discípulos de Cristo eram obrigados a crer na Sua divindade, na Sua onipotência; ora, esse Deus que eles adoravam como onipotente, eles viam-no sofrer, ferido, crucificado, e até mesmo o viam morto numa cruz. A razão humana nos diz: «Mas se Ele é Deus, Ele não pode sofrer, Ele não pode morrer. Se Ele é todo-poderoso, com um simples piscar de olhos Ele vai esmagar todos esses soldados, seus algozes». Mas não! Ele os deixa agir. E Ele permanece Deus, Ele é verdadeiramente Deus. Não obstante, Ele sofre, não como Deus mas em Sua humanidade. Eu diria que aí também nós temos um exemplo que pode nos ajudar a compreender o que se passa na Igreja. Certos místicos, certos santos, e o próprio Mons. Lefebvre, nos propõem essa visão misteriosa segundo a qual a Igreja, o Corpo Místico de Nosso Senhor segue o mesmo caminho que o Seu corpo físico. Se Nosso Senhor quis sofrer uma Paixão no Seu corpo físico, essa Paixão se perpetua, no tempo e no espaço, através dos membros do Seu Corpo Místico.
Há épocas nas quais vemos mais claramente essa Paixão, nas perseguições por exemplo. Aquela que nós vivemos hoje é muito mais difícil de perceber, pois é uma perseguição não física mas espiritual, e porque o braço que persegue não está no exterior mas no interior da Igreja. Isso torna-se quase insustentável. O Bom Deus nos obriga a uma terrível provação da fé. Ele exige de nós uma fé heróica, e em tempos assim, meus caríssimos fiéis, é preciso nos voltarmos para a Virgem Santa, pois se há na história uma pessoa na qual brilha a fé, é a Santa Virgem. Ela que foi feita objeto de uma bem-aventurança por causa da sua fé. No Evangelho, a sua prima Isabel declara a ela: «Bendita sois vós, pois crestes nas coisas que vos foram ditas» (Lc. I,45). Bendita por causa dessa fé. E mais tarde ela manifestará a sua fé ao pé da cruz. É realmente, portanto, a ela que devemos nos voltar para lhe pedir uma fé que possa atravessar essa provação. E, se vós estais aqui hoje, é realmente porque o Bom Deus vos sustenta nessa fé, Ele vos mantém na fé católica, nessa via católica que continua apesar de tudo, apesar das provações. Mas, ainda outra vez, como temos necessidade desse sustento!

Acerca do ultimato do cardeal Castrillón Hoyos

Eu gostaria de aproveitar estes instantes para dar notícias sobre o que se passa hoje em Roma com relação à Fraternidade. Provavelmente ouvirdes falar de um ultimato. Em que pé estamos? Antes de mais nada, é uma coisa bizarra esse ultimato, pois quando há esse gênero de manobra, há um objeto. No caso que nos toca, nós nos perguntamos qual era o objeto. Eu fui convocado pelo cardeal Castrillón Hoyos, no começo do mês de junho, porque a última Carta aos amigos e benfeitores da Fraternidade São Pio X fazia um balanço indicando claramente que nós não estávamos dispostos a beber o veneno encontrado no concílio. Foi isso o que desgostou as autoridades romanas. O fato de dizermos que nós não mudaríamos, que resistiríamos, que não beberíamos esse veneno, foi isso que os desgostou. Então, eu fui convocado a Roma, e lá me entregaram uma folha escrita. Estavam presentes a essa reunião, que se passou nos escritórios da Comissão Ecclesia Dei – foi, de resto, a primeira e única vez que fui a esses escritórios –, estavam lá então o cardeal, o vice-presidente da comissão Mons. Perl, o secretário Mons. Marini e o secretário particular do cardeal. Eu estava acompanhado do Sr. Pe. Nély.

Entregam-nos uma nota escrita, e o cardeal me pede que eu a leia diante de todo mundo. Nessa carta, que parece verdadeiramente um ultimato, está dito em substância: «Até aqui eu afirmei que não éreis cismáticos, mas doravante não poderei mais dizer isso. Hoje é preciso que aceiteis as condições claras que nós vamos vos impôr». Depois de ter lido, eu perguntei ao cardeal quais eram essas condições claras, pois elas não estavam escritas. E o cardeal não me respondeu absolutamente nada. Eu reformulei a questão, perguntando a ele: «O que esperais de mim?»; nesse momento, quase em voz baixa, ele respondeu: «Se pensais em consciência que deveis dizer isso aos vossos fiéis, fazei-o! Mas deveis respeitar a pessoa do papa». Ao que, respondi-lhe eu que por mim tudo bem. E foi assim que essa reunião terminou. – Como posso afimar que o motivo dessa reunião foi verdadeiramente a última Carta aos amigos e benfeitores? É porque eu perguntei a ele, já que ele fazia referência a ela: «Podeis dizer-me o que não está bem nesta carta?»; ele então a releu na minha frente, e o única reparo que ele conseguiu formular foi o fato de eu escrever que os conventos estavam vazios, assim como os seminários. Ele me disse: «Isso não é verdade». Foi o único reparo.
Então, em que consiste esse ultimato, qual é o seu objeto? Na saída dessa entrevista, eu disse ao Sr. Pe. Nély que eu estava muito frustrado, porque eu tinha assistido a uma encenação teatral, carregada de emoção, na qual o cardeal declarou: «Acabou! Vou convocar uma conferência de imprensa. Paro tudo!». Mas o que esperavam verdadeiramente de mim, eu ignoro. Se bem que eu tenha reenviado o Sr. Pe. Nély no dia seguinte, para que ele fizesse a pergunta mais uma vez: «O que quereis?»; então fizeram-no esperar uma meia hora, o tempo de redigir os famosos cinco pontos que foram difundidos pela Internet.
Cinco pontos, dos quais o primeiro diz isto: «É preciso que Mons. Fellay se comprometa a dar uma resposta proporcionada à generosidade do papa». O que será que isso pode realmente querer dizer? É uma palavra extremamente vaga, que pode dizer tudo e nada. Somos obrigados a supor que essa generosidade do papa foi o Motu Proprio. E a resposta proporcionada foi lhe agradecer, ao mesmo tempo que reconhecendo que não era para nós, pois era para todos os padres da Igreja. Se não for isso, não enxergamos bem.
Em seguida eu devia me comprometer, nesta carta, a respeitar a pessoa do papa. Eu suponho que isso quer dizer que não devemos ofendê-lo, mas se se considera como uma ofensa dizer que ele é perfeitamente liberal, bem depois de uma viagem aos Estados Unidos na qual ele só fez louvar o Estado americano, declarando que a liberdade de todas as religiões era magnífica… Verdadeiramente, não se pode encontrar declaração mais liberal do que esssa. Não vejo o que há de ofensivo nas minhas palavras.
O terceiro ponto é mais sensível, pois se me pede de não me erigir «como magistério acima do papa e não pôr a Fraternidade em contraposição à Igreja». Também aí, isso quer dizer tudo e não quer dizer nada. Com essa frase, toda vez que fizermos uma objeção, se nos dirá: «Vós vos pondes acima do papa». É exatamente esse ponto que faz compreender que Roma não está nada de acordo com o fato de nós ousarmos dizer algo contra o concílio. É aí que está o problema.

Nós consideramos essencial essa confrontação teológica

Diz-se que eu recusei uma proposta de Roma, mas não houve proposta de Roma. Houve simplesmente um cardeal impaciente com o fato de as coisas, disse ele, «se arrastarem». Ora, nós havíamos dito desde o ano 2000 às autoridades romanas que não confiávamos nelas e que se elas queriam um diálogo, era preciso começar dando sinais que pudessem nos fazer recuperar alguma confiança. Esses sinais seriam em número de dois: a liberdade da Missa tradicional e a retirada do decreto de excomunhão dos bispos. Depois de sete anos, podemos dizer que um dos pontos foi realizado. Resta o segundo. Depois disso estamos dispostos a discutir, nós dissemos. E nós o dizemos ainda, pois é muito importante, nós consideramos verdadeiramente essencial esse confronto teológico, que deve permitir enxergar se aquilo que foi dito no concílio e no pós-concílio é fiel à Revelação, ao ensinamento da Igreja. Não somos nós que nos erguemos acima do papa, são os papas do passado que canonizaram um certo número de proposições, que as definiram dogmaticamente. Essas proposições não podem mais ser alteradas. Um dogma é incontestável. Então, não somos nós que nos erguemos como juízes. Nós pedimos simplesmente ao papa de hoje que ele nos explique como é que aquilo que ele nos diz corresponde ao que os predecessores dele disseram, tendo em mente as palavras claríssimas do Apóstolo São Paulo: «Se um anjo, ou eu mesmo, vos anunciar um evangelho diferente daquele que vos ensinei, que seja anátema» (Gal.,I,8-9). Isso não tem como ser mais forte. Tem-se a impressão de que São Paulo já previa situações como aquela em que nos encontramos: Se eu mesmo – e ele é apóstolo –, eu começo a ensinar-vos algo de diferente daquilo que vos ensinei antes, que eu seja anátema! Se um anjo vier ensinar-vos outra coisa, anátema!

Nós temos 20 séculos de ensinamento da doutrina da Igreja. São essas coisas que julgam o papa. Não somos nós. O papa é infalível quando ele corresponde às condições que lhe são dadas. E, como ele sabe disso, que ele faça uso da sua infalibilidade! E ele dirá a fé, como os seus predecessores. Agora se, como no concílio Vaticano II, não se quer fazer uso dessa infalibilidade, acontecerá o que aconteceu.

Nós não queremos construir sobre a areia

Mas de nosso lado, que isto seja bem compreendido, nós não recusamos absolutamente nada da parte de Roma. Ainda agora nós continuamos a dizer que não podemos resolver a situação canônica da Fraternidade sem antes termos considerado a questão de fundo, – esse fundo que é justamente todas as novidades introduzidas na Igreja desde o Vaticano II. Fazer o contrário equivaleria a aceitar a proposta seguinte: oferecem-vos uma casa, mas uma casa não se sustenta no ar, ela é edificada sobre algo, sobre um terreno…, se essa casa é construída sobre areia movediça, vós a aceitaríeis? Se sabeis que amanhã ela vai desmoronar, que ela vai desaparecer engolida pelo pântano, vós dizeis a vós mesmos: não vale a pena. Assim também, se vos dizem que vos darão um Rolls Royce, mas que ele só pode ficar na garagem, por que vo-lo estão dando? Ou se vos dizem que vos darão um barco, mas que ele deve permanecer em terra firme?

É isso o que se passa conosco. Roma, querendo firmar um acordo canônico ou, para retomar essa imagem, oferecendo-nos um carro, um barco, uma casa, não quer sobretudo que discutamos a pedra sobre a qual será edificada a casa. Para as autoridades romanas, subentende-se que o ambiente no qual circulará esse carro ou navegará esse barco é o ambiente doutrinal do Vaticano II. Para elas, é absolutamente evidente que não há pôr em questão as novidades do Vaticano II, e está precisamente aí o ponto crucial, o ponto que queremos levar Roma a confrontar. E, enquanto Roma não quiser fazer isso, nós não podemos seguir adiante. Nós somos obrigados a passar por aí, pois senão, é construir sobre a areia. E nós não queremos construir sobre a areia. É em nome da fé, do ensinamento da Igreja, da prática da Igreja que nós dizemos isso.

De Roma nós esperamos a fé

Se nos declara: «Vós sabeis, hoje o papa quer o vosso bem, mas quem virá depois dele? Não se sabe! Então, é agora o momento ou nunca mais, em que deveis aceitar». Eu respondi ao cardeal que veio com essa conversa: «Eminência, eu creio no Espírito Santo. Se o Espírito Santo é capaz de iluminar esse papa, ele poderá também iluminar o próximo». E se ele nos quer bem, talvez o próximo papa nos quererá ainda melhor. Repito: nós não podemos discutir sobre a Fé, nós não temos o direito de traficar a Fé. Quando enxergamos de maneira tão clara o que se passa na Igreja – é o Bom Deus que nos dá essa graça –, não há lugar para uma negociação. Ademais, eu não gosto desse termo, ele é falso. Nós não estamos em negociação com Roma. De Roma, nós esperamos a fé. É a primeira coisa que se produz em nosso batismo, esta foi a primeira pergunta: «Que pedes à Igreja? – A fé». «Para que te serve a fé? – Para a vida eterna». É o contrato firmado no batismo. Nós pedimos à Igreja a fé, nós sabemos que somente a Igreja no-la pode dar. Pois então! Nós mantemos esse pedido primordial do batismo. Nós não fazemos nada além disso. Podemos resumir todo o nosso combate nisso, pois nós sabemos que a Igreja é a única entidade estabelecida por Deus capaz de salvar – nós não podemos ser salvos fora da Igreja: Fora da Igreja não há salvação –, e nós sabemos que essa salvação vem pela fé e pela graça. É isso que nós pedimos de Roma, nada mais, nada menos. Isso levará o tempo que for preciso.

Estaremos ainda vivos quando as coisas afinal tiverem melhorado ou não? É claro que nós o esperamos, mas disso não sabemos nada. É verdade que, humanamente falando, vemos um certo número de elementos que mostram que nos dirigimos para uma melhora. No nível dos princípios, há um despertar, há uma expectativa sobretudo nas jovens gerações, naquelas que não receberam nada, uma expectativa que se volta para a Tradição e que, insatisfeita com aquilo que se lhes oferece hoje, reivindica a doutrina tradicional. Vemos padres que se voltam para a Missa antiga e que simplesmente descobrem a religião deles. Se soubésseis o número de jovens padres que, celebrando a Missa antiga pela primeira vez, nos declaram: «Mas são dois mundos! Ao celebrar esta Missa, eu descubro o que é o Padre». Isso não quer dizer que eles não tivessem nenhuma ideia do sacerdócio, mas eles descobrem ali que Nosso Senhor quer que os Seus padres Lhe sejam unidos, sejam os Seus continuadores, mediadores entre Deus e os homens, para arrancar do coração de Deus a salvação das almas através do Sacrifício do Seu Filho ao qual eles são chamados a unir-se. É a chave da crise hodierna: não se quer mais saber da cruz, não se quer mais saber do sofrimento, não se quer mais saber do pecado, não se quer mais saber do sacrifício. Pode-se dizer que a solução desta crise está aí! É por isso que nós insistimos tanto sobre a Missa, pois a Missa é a expressão encarnada dessa Fé: a salvação passa pelo Sacrifício de Nosso Senhor, ela passa pelo padre. A crise que nós vivemos é uma crise do sacerdócio. Quis-se desnaturar o padre, um padre que hoje não encontra mais a sua identidade na missa nova. Eles ficam irritados em Roma quando nós dizemos isso! Eles não podem suportar que nós digamos que a missa nova é má. No entanto, basta olhar, é uma evidência. Basta olhar para os frutos. Nosso Senhor disse que reconhecemos nos frutos a qualidade da árvore.

«Os frutos são bons, então há o Espírito Santo!»

Cumpre então continuar, pelo tempo que for preciso! Será que esse affaire do começo do verão vai verdadeiramente acabar em declaração de cisma, como querem certos inimigos nossos? Eu duvido, mas sobre isso nada sei. E depois, o que é que isso mudará? De todo modo, os bispos nos tratam como cismáticos, como os piores seres que podem existir sobre a terra. Nas igrejas deles, eles recebem todo o mundo, eles fazem cerimônias de orações com todo o mundo, mas conosco é como se fôssemos a peste. Só vendo! Ao mesmo tempo que eles dizem em Roma que nós não somos cismáticos, tratam-nos como os flagelos da humanidade. Isso durará o tempo que durar, meus caríssimos irmãos. Nós temos a cada dia o consolo da graça, nós vemos bem o Bom Deus em obra nas nossas almas, nas almas das nossas crianças. Nós vemos bem que são os frutos da graça, e Roma também reconhece isso. Esse mesmo cardeal Castrillón, falando da Fraternidade, me disse: «Os frutos são bons, então há o Espírito Santo». Pois então! Que ele tire daí as consequências. Não as podemos tirar por eles. Nós não ousaríamos por nossa própria conta nos tecer esses louvores, ainda que possamos constatar também que os frutos são bons.

Nós recorremos então à Santíssima Virgem. Hoje, numa das antífonas, nós a saudamos como aquela que aniquila todas as heresias. Nós a celebramos: «Bendita sois vós, que aniquilastes todas as heresias». Há em Maria, tão doce por um lado, um aspecto terrível. E isso vem do seu amor. Se amamos Deus, se amamos o bem, na mesma proporção devemos odiar aquilo que é contra Deus. Devemos odiar o pecado. Temos aí um tipo de termômetro para nós mesmos, o nosso estado espiritual: até que ponto nós odiamos o pecado, a começar pelos nossos próprios pecados? Pois é na mesma proporção que nós amamos o Bom Deus. Peçamos à Santa Virgem aumentar essa proporção, essa proporção de amor e de aversão contra tudo o que se opõe a Deus, ao Seu reino, à salvação das almas. Peçamos a Nossa Senhora essa proteção particular, conquistemos dela essa proteção por uma devoção especial. Tentemos crescer na intimidade com o Coração Imaculado de Maria. Que Nossa Senhora seja verdadeiramente a nossa Mãe todos os dias, não somente durante um Ave ou uma passagem diante da sua estátua. Que ela seja verdadeiramente a nossa Mãe! Esta consagração que renovaremos conforme o voto de Luís XIII deve ter consequências na nossa vida. Que não sejam meras palavras. Que esse dom à Santa Virgem seja real, que ele seja um dom verdadeiro. Que nós vivamos em seguida verdadeiramente como filhos dela. Aí, sim, nós garantiremos a nossa salvação e, com isso, a continuação da tradição da Fé da Igreja, através do espaço e do tempo, para as gerações futuras. Assim seja!
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PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:
Bispo Bernard FELLAY, O que pedes à Igreja? A Fé!, Sermão por ocasião da procissão do voto de Luís XIII, Saint-Malo, 15 de agosto de 2008; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, agosto de 2009, http://AciesOrdinata.wordpress.com/
FONTE DO ORIGINAL FRANCÊS:
“Que demandez-vous à l’Église ? La Foi ! — Sermon de Mgr Bernard Fellay, lors de la procession du vœu de Louis XIII, à Saint-Malo, le 15 août 2008”, www.dici.org/fraternite_read.php?id=000144
Há na rede uma tradução para o inglês, no sítio do ótimo periódico Catholic Family News, editado pelo Sr. John Vennari: http://www.cfnews.org/Fellay-Aug15.htm

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