sábado, 18 de abril de 2009

CAPITULO X A CAUSA DO MAL É O BEM

1. Do exposto depreende-se que o mal não é causa­do senão pelo bem.

Com efeito, se o mal é causa de um mal, e como o mal não opera senão em virtude do bem, como foi pro­vado (c. prec.), é necessário que o próprio bem seja cau­sa do mal.

2. Além disso, o que não é, não é causa de coisa al­guma. Por isso, a causa deve ser um ente. Ora, o mal não é ente algum, como foi provado (c. VII). Logo, é ne­cessário que, se o mal é causado por alguma coisa, o seja pelo bem.

3. Além disso, tudo que é propriamente e por si mesmo causa de alguma coisa, tende para o seu próprio efeito. Por conseguinte, se o mal fosse por si mesmo causa de alguma coisa, tenderia para o seu próprio efei­to, que é o mal. Mas isto é falso, pois foi demonstrado acima (c. III) que todo agente tende para o bem. Por is­so, se o mal por si mesmo não é causa de coisa alguma, o é somente por acidente. Ora, toda causa acidental re-duz-se à causa por si mesma, e só o bem pode ser causa por si mesmo, mas o mal não o pode. Logo, o mal é cau­sado pelo bem.

4. Além disso, a causa ou é matéria, ou forma, ou agente ou fim. Ora, o mal não pode ser matéria, nem forma, pois acima foi demonstrado (c. VII) que o ente em ato e o ente em potência são bons. De modo seme­lhante, também não pode ser agente, porque a coisa opera segundo está em ato e tem forma. Nem o mal po­de ser fim, porque está fora da intenção, como acima foi provado (c. IV). Por isso, o mal não pode ser causa de coisa alguma. Logo, se uma coisa é causa do mal, deve ser causada pelo bem.

5. Ora, sendo o mal e o bem opostos, e como um dos opostos não pode ser causa do outro a não ser aci­dentalmente, como, por exemplo, quando se diz que o frio aquece como diz o Filósofo (VIII Física l, 251a; Cmt 2, 977), resulta que o bem não pode ser causa ativa do mal, a não ser acidentalmente.

Ora, essa acidentalidade nas coisas naturais pode vir tanto da causa agente, como do efeito. Da parte do agente, quando o agente é sujeito de um defeito na potência, resultando disso ser a ação defectiva e o efeito falho, como, por exemplo, quando o órgão digestivo está fraco e produz uma digestão fraca e uma indisposição, que são males da natureza. Mas acontece no agente, en­quanto opera, que tenha defeito na potência. Então não opera segundo a deficiência de potência, mas enquanto tem algo ainda de potência, pois, se a potência se lhe fa­lha totalmente, não agiria de modo algum. Assim, o mal é causado acidentalmente pelo agente, quando este tem deficiências na potência. Por esse motivo diz-se que o mal não tem causa eficiente, mas deficiente. Com efeito, o mal não resulta da causa agente, senão enquanto ela está com deficiência na potência. Assim, ela não é causa eficiente.

Chega-se ao mesmo resultado se a falha da ação e do efeito provém da falha existente no instrumento, ou em qualquer coisa exigida para a ação do agente, como, por exemplo, quando a potência motora leva uma pes­soa a claudicar por causa da tíbia torta, porque o agente opera por meio da potência e do instrumento.

Da parte do efeito, o mal é causado acidentalmente pelo agente, quer devido à matéria do efeito, quer devi­do à forma do mesmo. Ora, se a matéria não está prepa­rada para receber a impressão do agente, haverá neces­sariamente falha no efeito, como, por exemplo, o parto de um monstro, provindo de matéria não disposta. Nem isto é imputado à falha do agente, se a matéria indispos­ta não chega a ato perfeito, pois a cada agente material a potência está limitada segundo o modo da sua natureza.

E se não a excede, por isso não será falho na potência, mas somente se ficar aquém da medida da potência que lhe é devida naturalmente.

Da parte da forma do efeito, porém, o mal so­brevêm acidentalmente quando a uma forma se une ne­cessariamente a privação de outra forma, pelo que, con-juntamente com a geração de uma forma, deve vir a cor­rupção de outra. Este mal não é um mal do efeito que estava na intenção do agente, porém, de outra coisa, como se depreende do que foi exposto acima (c, VI).

Por isso, nas coisas naturais, é acidente que o mal sempre é causado pelo bem. Coisa semelhante acontece nas coisas artificiais, pois a arte imita a natureza na sua operação (II Física 2, 194a; Cmt 4, 170s), e há igualmen­te defeitos em ambas.

6. Em moral, porém, parece que as coisas apresen­tam-se de modo diferente.

Com efeito, não parece que o vício moral resulte do defeito da virtude, porque a fraqueza da virtude afasta totalmente, ou, pelo menos, diminui o vício moral. Com efeito, a fraqueza não merece o castigo devido à culpa, mas, antes, a misericórdia e o perdão. Isso porque, para haver vício moral, este deve ser voluntário, e não ne­cessário. Todavia, se se considera atentamente, é seme­lhante, em certo sentido, e dissemelhante em outro. Dissemelhante, enquanto o vício moral é considerado só na operação e não no efeito, pois as virtudes morais não são operativas, mas ativas. As artes, no entanto, são operativas. Por isso se diz que há nelas defeito, como há na natureza. Por isso, também, o mal moral não se con­sidera segundo a matéria ou segundo a forma do efeito, mas somente segundo o agente.

Nas ações morais há quatro princípios ativos orde­nados, dos quais um é virtude, isto é, a força motora pe­la qual os membros são movidos a fim de executar o que é mandado pela vontade. Por isso, esta força é movida pela vontade, que é outro princípio. Ora, a vontade é movida pelo juízo da potência apreensiva, que julga se as coisas são boas ou más, as quais são objeto da própria vontade, umas para serem desejadas; outras, porém, pa­ra serem afastadas. Mas a própria potência apreensiva é movida pela coisa apreendida. Por isso, o primeiro princípio ativo das ações morais é a coisa apreendida; o segundo princípio, a potência apreensiva; o terceiro, a vontade; e o quarto, a força motora, que executa o impé­rio da razão.

Mas o ato da virtude executora pressupõe o bem ou o mal moral, porque estes atos externos pertencem à moral enquanto são voluntários. Por isso, se o ato da vontade é bom, o ato exterior também o é. Se, porém, é mau, este também o é. Não haverá malícia moral algu­ma, se o ato exterior falhar por um defeito não ligado à vontade, pois, por exemplo, o claudicar não é vício mo­ral, mas defeito natural. Por conseguinte, o defeito desta virtude executora afasta totalmente ou, pelo menos, di­minui o vício moral.

Porém, o ato pelo qual a coisa move a potência apreensiva está imune de vício moral, pois o visível move a vista segundo a ordem natural, e qualquer objeto, a potência passiva. Carece também de vício moral o ato da potência apreensiva, considerado em si mesmo, porque o seu defeito, ou escusa do vício moral, ou diminui, co­mo também o defeito da virtude executora. Igualmente, a fraqueza e a ignorância escusam do pecado, ou o di­minuem. Resulta, pois, que o vício moral encontra-se, em primeiro lugar, e principalmente, só no ato da von­tade. E com razão, porque o ato é dito moral porque é voluntário. Logo, deve buscar-se a raiz e a origem do pecado moral no ato da vontade.

7. No entanto, parece que a esta indagação segue-se uma dificuldade. Com efeito, visto que o ato da potência defeituosa resulta de um defeito do princípio ativo, de­ve-se conhecer o defeito da vontade anterior ao pecado moral. Defeito este que, se for natural, inere sempre à vontade. Por isso, a vontade pecará moralmente no agir, o que, no entanto, é falso, como manifestam os atos da virtude. Ora, o defeito voluntário já não será pecado moral, cuja causa deve ser de novo procurada e, desse modo, a razão procederá ao infinito. É, por conseguinte, necesário dizer que o defeito anterior da vontade não é natural, para que não resulte que a vontade peque em cada ato. E que também não é casual e fortuito, pois, então, não haveria em nós pecado moral, já que as coi­sas casuais não são premeditadas e estão fora da razão. Logo, é voluntário, mas não pecado moral, para que não entremos em processo ao infinito.

8. Como, no entanto, isso possa ser, deve-se agora considerar.

Com efeito, a perfeição de qualquer princípio de potência depende de um princípio superior, pois o agen­te segundo opera em virtude do primeiro. Como o agen­te segundo permanece dependente do primeiro, opera indefectivelmente. Mas terá defeito na operação se acontecer eximir-se da subordinação ao primeiro agen­te, como se verifica no instrumento que se desliga do movimento do agente. Foi dito que, na ordem das ações morais, dois princípios precedem a vontade, a saber, a potência apreensiva e o objeto apreendido, que se iden­tifica com o fim. Ora, se cada movido corresponde ao movente próprio, não é qualquer potência apreensiva o devido movente de qualquer apetite, mas para cada ape­tite há a potência apreensiva adequada. Assim, como o movente próprio do apetite sensitivo é a potência apre­ensiva sensitiva, também o movente próprio da vontade é a própria razão.

9. Além disso, como a razão pode apreender muitos bens e muitos fins, e cada coisa tem o seu fim próprio, também será o fim e o primeiro movente da vontade, não qualquer bem, mas um bem determinado. Por isso, como a vontade tende para o seu ato movida pela apre­ensão da razão, que lhe apresenta o seu próprio bem, segue-se a ação devida. Mas quando a vontade ao agir precipita-se para o objeto de uma potência sensitiva apreensiva, ou para o da própria razão, que lhe apresen­ta um bem diverso do que lhe é próprio, segue-se, então, o pecado moral na ação da vontade.

Na vontade, pois, o defeito da ordenação à razão e ao devido fim precede o pecado da ação. Há defeito de ordenação à razão, quando a vontade, por causa de uma súbita apreensão do sentido, tende para o bem deleitá-vel sensível; ao fim devido, quando a razão leva o ra­ciocínio a um bem que não é um bem naquele momento, ou daquele modo, mas a vontade se inclina para ele co­mo se fosse o seu bem próprio. Este defeito de orde­nação é voluntário, pois está no poder da vontade o que­rer e o não querer. E também está no seu poder que a razão considere no momento, ou deixe de considerar, ou que considere esta ou aquela coisa. No entanto, esta úl­tima falha não é mal moral, pois, se a razão não conside­ra coisa alguma, ou se considera um bem qualquer, isto ainda não é pecado enquanto a vontade não se inclinar para o fim indevido, o que já é ato voluntário.

10. Por conseguinte, quer nas coisas naturais, quer nas coisas morais, é evidente que o mal não é causado pelo bem, senão acidentalmente.

Suma Contra os Gentios

Santo Tomás de Aquino

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