sexta-feira, 3 de abril de 2009

Dois amores, duas cidades: Via modernorum I

Gustavo Corção

A infiltração nominalista na Civilização Ocidental Moderna.

Antes de iniciarmos o exame dos di- versos aspectos da Civilização Ocidental Moderna, convém determo-nos naconsideração mais acurada e mais abstraia dos principais fatôres desse importante período da história. Atrás dissemos que o triunfo do Nominalismo pesou mais na história moderna do que a invenção da imprensa, a descoberta da pólvora e a Reforma. Receamos que o leitor se apresse a julgar esque­mática demais nossa tese, e depois se apegue a esse juízo. E não ignoramos que a variedade dos acontecimentos, e até os contrastes das sistematizações fisolóficas, parecem contrariar a ideia de uma influência pertinaz e de certo modo constante.

Na verdade, observam-se muitas oscilações nesses quatro séculos que nos propomos examinar. Sob o ponto de vista das doutrinas económicas praticadas, começa mercantilista, e portan­to fortemente intervencionista, para terminar com o laissez-faire do liberalismo; sob o ponto de vista da relação homem-mundo começou violentamente naturista para terminar violentamente artificialista, oscilando da utopia do Eldorado para a utopia do Brave New World; sob o ponto de vista da relação do homem consigo mesmo, começou por um otimismo exultante e por um sentimento de descoberta, para após quatro séculos terminar num pessimismo acabrunhante, e num sentimento de extravio, desam­paro, esquecimento do próprio nome, que chamaríamos com­plexo de Parsifal, para aumentar a coleção das paralisias psí­quicas já catalogadas.

Poderíamos prolongar a lista de oscilações, todas elas, en­tretanto, inscritas dentro de certa tonalidade, ou presas aos mes­mos eixos. Para entender bem esse problema precisamos lem­brar o que já dissemos (Vol. I, II) sobre o valor civilizacional das ideias, e será bom reforçarmos a confiança nessa direção do pensamento.

jacques maritain: "As dores e esperanças de nosso tempo dependem, sem dúvida, das causas materiais, dos fatôres económicos e técnicos que desempenham papel essencial no movimento da história humana; mas ainda mais pro­fundamente dependem das ideias, do drama em que o espírito está engajado, das forças invisíveis que nascem e se desenvolvem em nossa inteligência e em nosso coração: porque a história não é um desenrolar mecânico de acon­tecimentos no meio dos quais o homem estaria simples­mente situado como um estranho; 'a história humana é humana na sua substância; é a história de nosso próprio ser, dessa carne miserável, submetida a todo o senhorio da natureza e de sua própria fraqueza, mas assim mesmo habituada e informada por um espírito, que lhe confere o terrível privilégio da liberdade. Nada, pois, é mais im­portante do que tudo o que ocorre dentro do universo invisível, que é o espírito do homem. Ora, a luz desse universo é o conhecimento. De onde se conclui que uma das condições exigidas para a construção de um mundo mais digno para o homem, ou para o advento de uma civilização, é a volta às fontes autênticas do conheci­mento: para sabermos o que é o conhecimento, qual é o valor, quais são os seus graus, e como pode ele assegurar a unidade interior do ser humano." (Raison et Raisons, Egloff, Paris, 1947, págs. 11, 12.)

Ora, qual terá sido a colocação constante, se alguma houve durante toda a Civilização Ocidental Moderna, relativa à na­tureza do conhecimento, ao seu valor, aos seus graus, e qual terá sido a consequência cultural dessa colocação na integração da unidade interior do ser humano?

Devemos dividir o problema em dois. No primeiro estão as posições tomadas, as formulações professadas pelas escolas, pêlos sistemas clara e conscicntementc filosóficos; no segundo estão as influências absorvidas, respiradas por todos (com exceção de pequena minoria que se defende, se opõe, mas assim mesmo ainda polariza seus atos por essas influências), transformadas cm híihiíos mentais trocados em miúdos, e usadas sem clara t iiiisdência da posição ou da filiação filosófica. Quando dize­mos que o Nominalismo pesou fortemente na C.O.M. queremos iüat duas coisas: a primeira é que os sistemas e elaborações filosóficas desse período tiveram esse caráter; a segunda e prin­cipal é que nas conversas de esquina, nas famílias, nos encon­tros dos namorados, na administração pública, etc, se encontram critérios com aquele inconfundível cunho.

Cuidemos do primeiro problema. A impressão que logo co-llk-mos na história do pensamento filosófico é desconcertante. Reaparecem as oscilações entre extremos que parecem incon­ciliáveis, e sobretudo originados de fontes diversas. Descartes se opõe a Locke e a Augusto Comte, Berkeley se opõe a Fichte. Hegel se opõe a Kieerkegaard e a toda a corrente existencia­lista; mas por outro lado, esses mesmos que se opõem segundo um dado critério se compõem segundo outro, e passam a con­trariar aqueles com que antes concordavam.

Em certo ponto do estudo podemos ser acometidos de uma crise de desânimo, ou de um ataque de hilaridade: parece que tudo o que é possível dizer de tudo já foi dito, e posto em indu­mentária de doutrina por algum filósofo.

Leitura mais pausada e refletida nos indicará, nesses quatro ou cinco séculos, um fio condutor, algumas constantes. Uma dessas, que parece traduzir um sentimento de culpa, é a im­portância que todos parecem dar ao problema do conhecimento. Homens apaixonadamente engajados na vida de ação não esca­pam à regra.

lenine: "A grande e fundamental questão de toda a filo­sofia, e especialmente da filosofia moderna, é a da relação entre o pensamento e o ser. Qual será o elemento pri­mordial, o espírito ou a natureza?" (Marx, Engels, Mar-xisme, pág. 15.)

Outra constante que se observa, relativa agora ao valor do conhecimento, é o destaque que adquire a Crítica que, em al­guns casos, passa a ser toda a filosofia. Já se disse de Kant que sua obra é a monumental introdução de uma obra que não foi escrita.

A terceira nota, referente desta vez aos graus do saber, é a posição subserviente em que se coloca a filosofia (pensamos por exemplo num Augusto Comte) diante da ciência positiva. Se voltarmos ainda a estudar a história do pensamento filosófico moderno, com redobrada atenção, e principalmente com a bús­sola de uma filosofia que possa julgar as outras, em seus acertos e desacertos, perceberemos mais nitidamente que, debaixo da variedade e das contradições, há uma unidade de índole.

J. marechal, S. J.: "Diminuiríamos toda a filosofia moderna se pretendêssemos tirá-la inteira, por dedução lógica, do nominalismo de Occam; nem pretendemos mesmo que a epistemologia do período pré-kantiano — só a epistemo-logia! — tenha tido essa filiação exclusiva. Muitos outros fatôres entraram em jogo: restauração, mais ou menos exata, das filosofias antigas; inovações pessoais de ousados pensadores; e acima de tudo, talvez, a influência da meto­dologia das ciências indutivas e da matemática, em cons­tante progresso. Contudo, por mais que se valorizem essas influências diversas, é preciso reconhecer que a filosofia moderna, desenvolvendo-se em um terreno profundamente trabalhado pelo nominalismo, adquiriu assim uma cor epis-temológica bastante acentuada e bastante uniforme para revelar, na colcha de retalho das Escolas, uma unidade genética profunda." (Lê Point de Départ de Ia Métaphy-sique, Cahier I, Felix Alcan, 1927, pág. 196.)

Preferiríamos formular a conclusão em termos um pouco diferentes. Dizendo "unidade genética" o autor sugere um pro­cesso de filiação, e se coloca decididamente na perspectiva da causalidade eficiente: as correntes dos "nominais" do século XIV estariam a suprir diretamente os cromossomos filosóficos do cartesianismo, do hegelianismo, e das mais correntes do pen­samento moderno. Preferimos uma atitude mais isenta, a da causalidade formal: aquelas correntes apresentam similitudes, "identidade de tendências" que se explicarão em parte por aquela filiação, mas também em parte, e talvez na maior, pela coinci­dência negativa.

Expliquemo-nos melhor. Parece-nos um pouco desmedido, e até pueril, responsabilizar Guilherme Occam, diríamos melhor, homenagear esse medíocre filósofo, com a responsabilidade de um desvio epistemológico de cinco séculos! Lembrando o que dissemos atrás dos homens representativos, classificaríamos Durand de Saint Pourçain, Pierre Auriol e Guilherme Occam, sem nenhuma hesitação, entre os passivos e negativos. É mais ampla e anônima a causa da decadência da escolástica e da torrente nominalista que inundou o mundo ocidental pelas brechas da Renascença e da Reforma.

(í. fraille: "Oxford e Paris (no século XIV) continuam sendo as principais universidades. Cresce o número de profes­sores e de alunos. Em 1406, só na Faculdade das Artes de Paris contavam-se mil professores e dez mil discípulos. Mas a decomposição interna se acentua, o rigor dos regu­lamentos se atenua, diminuem a intensidade dos estudos e a seriedade das provas para a concessão dos graus aca­démicos, que até por dinheiro se obtinham. Ao mesmo tempo, a multiplicação das universidades em outros países contribuía para privar Paris de sua categoria cosmopolita. Muitos mestres abandonavam suas aulas para dirigir-se a outros centros que ofereciam maiores vantagens (...) Prevalece sobre todas as correntes a chamada via moder-norum, que invade quase todas as universidades, e à qual aderem não poucos membros de Ordens religiosas que abandonam suas próprias escolas." (Historia de Ia Filo­sofia, II, B. A. C. 1960, pág. 1076.)

Na verdade, dizer que em todas as universidades dos fins do século XIV se ensinava o nominalismo, é o mesmo que dizer que se desensinava a filosofia. Mais adiante, quando focalizar­mos alguns problemas mais nitidamente filosóficos, veremos que o nominalismo, e todas as correntes derivadas, se caracterizam por uma ruptura onde houvera uma síntese laboriosa e genial­mente construída pêlos grandes escolásticos; ou se revela como uma impotência em contraste com o vigor daqueles; ou se de­nuncia por uma atitude simplificadora em contraste com a cora­josa e generosa de Santo Tomás. Invocando uma regra boa — "non sunt multiplicanda entia sine necessitate" — os seguido­res da via modernorum não multiplicaram também as necessá­rias exigências do estudo filosófico. Brutalizaram e vulgarizaram.

Cremos que sertà melhor dizer que o nominalismo, nos sé­culos XV e XVI, não era uma corrente filosófica, era antes uma atitude de espírito, ou talvez isso que hoje chamam de ideologia. Para entender o fenómeno no seu surgimento histórico, e no ressurgimento ao longo da subsequente história da filosofia, precisamos compreender que não basta considerar a atitude dos nominalistas em face do problema dos universais, ou de qualquer outra tese; também não basta mencionar o espírito crítico, o ergotismo, o gosto do malabarismo verbal, e outros pecados que o ar do século XV alimentava. Apesar das rivali­dades e dos torneios retóricos em que o doctor invincibilis, discípulo do doctor subtilis, gostava de brilhar, não havia pro­priamente um sistema, ou uma escola. Mas essa coisa vaga que chamamos "estado de espírito" ou "ideologia" produziu as mais amplas repercussões na política, na filosofia, na teologia e na mística. A teologia passa a dispensar os serviços da filosofia. Não precisa talvez da razão. Não podendo estar preso a ne­nhuma obrigação, Deus não poderia ficar atado nem às fórmu­las dogmáticas, nem aos preceitos morais. Se quisesse, poderia Ele declarar que as tábuas de Moisés estavam superadas, e con-seqüentemente poderia apontar como meritórios os atos que os antigos julgavam perversos e egoístas. E se quisesse — sim, por incrível que pareça, para eletrizar seus alunos de Oxford, e principalmente para escandalizar os "integristas" que ainda es­tudavam Santo Tomás, o doctor invincibilis inventou esta va­riante para a Encarnação: se Deus quisesse poderia ter encar­nado seu Verbo num burro!

G. fraille: "Santo Tomás tinha realizado a incorporação da filosofia ao cristianismo, e criado com isto a teologia como ciência no sentido rigoroso do termo. A razão e a fé, a filosofia e a teologia, são coisas distintas, mas podem se integrar harmônicamente em um trabalho comum, con­tribuindo para a explicação e penetração dos dogmas da Fé. Escoto, embora formulando-a de outro modo, ainda manterá a solução afirmativa. Mas Guilherme Occam adotará ante esse problema uma atitude decididamente ne­gativa. A teologia não é ciência, e não há possibilidade nenhuma de conciliação entre os dois campos, o da razão e o da Fé. Nesta atitude estão implicados todas as teses do nominalismo: sua teoria do conhecimento, sua doutrina dos conceitos universais, sua ideia de ciência. E assim se compreendem os múltiplos desvios, aparentemente contra­ditórios, que resultam do maior ou menor uso de seus prin­cípios. Assim veremos como, debaixo da mesma ampla denominação, cabem as atividades mais discrepantes: criticismo, fideísmo, empirismo, racionalismo, ceticismo, indi-ferentismo religioso e misticismo." (Op. cit. 1078-79.)

Com as características negativas acima apontadas, podería­mos dizer que o nominalismo é uma espécie de avitaminose ou de carência, ou que é o modo invariável de a filosofia adoecer, desenganar-se e morrer. Sem necessidade nenhuma de filiação histórica, de conexão genética, em qualquer lugar isolado do mundo, ou em qualquer planeta, onde não surgisse um Santo Tomás, seus grandes discípulos, comentadores e continuadores, sem necessidade nenhuma também de algum doctor invincibilis, a tendência geral da mediocridade filosofante produziria coisa parecida com o que chamamos nominalismo. Se na conjuntura imaginada acrescentássemos a situação de decadência em rela­ção a um estágio anterior, e a corrupção geral da cultura e das atividades intelectuais, e por cima disto tudo uma erupção de modernismo, então o surto da mediocridade filosofante teria a virulência que observamos na alvorada da nova civilização.

Cremos que o caso concreto da situação filosófica nos séculos XV e XVI, e o que aconteceu depois, se explica por causas endógenas em interação com agentes exógenos. A ten­dência natural do desmoronamento cultural, ou da entropia cres­cente no domínio da filosofia, foi acelerada pêlos agentes pro­gressistas da época que alegremente depredaram uma cultura fi­losófica que era um dos mais preciosos tesouros da humanidade. Ê verdade que, como obras feitas, não se perderam as jóias desse tesouro. E até podemos dizer que ainda hoje, numa ci­vilização nominalista até à medula dos ossos, é comum encon­trar-se na casa de um amigo alguns volumes da Suma Teológica. Na coleção dos Great Books organizada por Mortimer Adler lá está a obra de Santo Tomás, e em vão procuraremos qual­quer obra de Guilherme Occam.

A obra de Santo Tomás, e a corrente aristotélico-tomista é a única que atravessa os séculos e sempre tem estudiosos. Mas a influência civilizacional deslocou-se, a atmosfera contaminou-se com a radioatividade da explosão atómica dos séculos XIV e XV. E esse é o ponto que nos interessa especialmente neste tra­balho. Para entendermos melhor as suas dimensões e o seu alcance, devemos estudar um pouco mais de perto o problema filosófico propriamente dito. São inevitavelmente árduas as pá­ginas em que tentaremos resumir os pontos principais, pelo que, pedimos ao leitor um reforço de paciência e de atenção.

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