Pe Antônio Vieira
Valde mane una sabbatorum, veniunt ad monumentum, orto jam Sole, Marc. XVI.
I
Quem mais ama, mais madruga. Assim o fez nesta manhã o divino amante Cristo, continuando os desvelos do seu amor: e assim o devemos nós fazer todos os dias, para não faltar às correspondências do nosso. Nestas duas palavras tenho proposto tudo o que hei-de dizer. E porque não hei-de dizer graças, peçamos a graça. Ave Maria.
II
Quem mais ama, mais madruga. O amor nasce nos olhos, e quem o pintou com os olhos tapados, devia de ser cego. Esse amor, quando muito, será o pintado, o amor vivo e o verdadeiro sempre está com os olhos abertos, porque sempre vela. Quem tirou o véu ao amor, esse lhe descobriu a cara, porque o mostrou desvelado. Não me estranheis o equívoco, que em manhã tão alegre e tão festiva, até os Evangelistas o usaram, como logo vereis. Torno a dizer, que é grande madrugador o amor, porque quem tem cuidados não dorme. A filosofia deste porquê não é menos que de Platão, a quem chamaram o divino: Inquieta res est amor: parum diligis, si multum quiesces: O amor é um espírito sempre inquieto, e quem aquieta muito, sinal é que ama pouco. Vistes alguma hora quieta ou ardendo na cera, ou em outra matéria menos branda, uma labareda de fogo? Jamais. Sempre está inquieta, sempre sem sossegar, sempre tremendo, e não de frio. E porque o amor não sabe aquietar, por isso não pode dormir. Talvez adormecerão os sentidos, mas o amor sempre vela, porque sempre lhe faz sentinela o coração: Ego dormio, et cor meum vigilat. Um dos mais insignes amadores do mundo foi Jacob. E que dizia este famoso amador? Fugiebat somnus ab oculis meis: Diz que fugia dos seus olhos o sono. A campanha em que o amor e o sono se dão as batalhas, são os olhos, e nos olhos de Jacob estava tão costumado o amor a ser vencedor, e o sono a ser vencido, que não se atrevia o sono a lhe acometer os olhos, antes fugia deles: Fugiebat somnus ab oculis meis. E como o maior despertador dos sentidos e dos cuidados é o amor, cujas asas, e as do desejo, voam mais que as do tempo; daqui vem que para quem espera pela manhã, as estrelas são vagarosas, os galos mudos, as horas eternas, a noite não acaba de acabar, e por isso, como dizia, quem mais ama, mais madruga.
Madrugaram hoje todas as Marias a ungir na sepultura o sagrado corpo: e qual madrugou mais? Para mim é consequência certa, que a Madalena. A Madalena amava mais que todas, logo Madalena madrugou mais que todas. E donde tiraremos a prova? Porventura, porque todos os Evangelistas nomeiam a Madalena em primeiro lugar, e S. João só a ela? Seja embora conjectura provável. Porventura, porque só da Madalena se diz que chorou: Stabat ad monumentum foris plorans? Melhor razão; porque o madrugar e o chorar é próprio da aurora: e nem o nome de aurora perderia na Madalena a formosura, nem as suas pérolas o preço. Porventura, porque tornando-se as outras Marias quando não acharam no sepulcro o corpo que iam ungir, só a Madalena sem se apartar daquele sagrado lugar, perseverou nele? Muito melhor argumento; porque nem só perseverou depois de todos, é sinal que antes desejou e se desvelou mais que todos. Mas a prova para mim mais evidente, é ser a Madalena a primeira a quem o Senhor apareceu: Apparuit primo Mariae Magdalene. Passemos das Marias aos Apóstolos. Aos outros Apóstolos apareceu o Senhor no mesmo dia de hoje, e só a S. Tomé daqui a oito dias: Post dies octo. E porquê? Porque S. Tomé tardou oito dias em vir: e assim como Cristo tarda mais para quem mais tarda, assim madruga mais para quem mais madruga. Antecipou-se Cristo a buscar primeiro que todos a Madalena, porque a Madalena se antecipou, e madrugou mais que todos em buscar a Cristo: ela foi a primeira em amar, porque só dela faz menção o Amado: e porque só ela chorou sem lhe enxugar as lágrimas a vista dos anjos; e porque só ela perseverou firme sem se apartar do sepulcro; e porque foi a primeira em amar, também foi a primeira em madrugar, provando como aurora do Sol de justiça, que quem mais ama, mais madruga. Mas vamos ao nosso tema, onde os embargos que tem o mesmo Sol nos darão a melhor prova.
IX
Até aqui se tem cansado o meu discurso (e cansado também aos ouvintes, que o não esperavam tão largo nesta hora) em satisfazer ao que prometi. Mas como aproveita pouco o semear sem colher, assim é inútil o dizer sem persuadir. Por este receio e justa desconfiança que tenho de mim, quisera que me acabara o sermão outro pregador. Considerando pois que pregador escolheria para este socorro, resolvi-me a que fosse o que maior e mais declarado fruto fez nesta Semana Santa. E quem é? Aquele que converteu a S. Pedro, e cantando o fez chorar: Cantavit gallus, recordatus est Petrus, et flevit amare. Não desprezeis o pregador, porque para perorar, e persuadir o que tenho dito, nenhum tem melhor talento, nem melhor eficácia. É tão douto, que não se preza menos a Sabedoria divina da ciência que pôs no homem, que da inteligência que deu ao galo: Quis posuit in visceribus hominis sapientiam, vel quis dedit gallo intelligentiam? Prega com a voz, e com o exemplo; porque faz o que diz. Se desperta e acorda aos outros, primeiro se desperta e acorda a si: e não abre a boca sem bater as asas, que é acompanhar a voz com as acções. O assunto da sua pregação é o próprio do meu discurso; para que aos homens por desacautelados, quando nasce o Sol, os não ache dormindo. Assim o notou Plínio: Nec Solis ortum incautis patiuntur obrepere. E para que não pareça cousa indigna, que o sermão de um pregador com fé, o acabe um animal sem uso de razão; lembrai-vos que tendo Deus falado muitas vezes ao profeta Balaão por si mesmo, no fim o convenceu pela língua de um bruto. Do mesmo modo o faz agora aos cristãos por meio das vozes ou brados daquele despertador irracional: Gallus jacentes arguit et somnolentos increpat: Sabeis (diz a Igreja Católica) o que fazem dentro da vossa família as vozes daquela ave tão vigilante? Argúem os que jazem na cama, e não se levantam; e repreendem os que se deixam vencer do sono, e não madrugam. E se me perguntais porque repete o galo a mesma voz, uma, e três vezes em cada noite; digo que são três admoestações canónicas, com que Deus avisa a todo o homem cristão, que o há-de excomungar e separar da comunicação dos verdadeiros fiéis, se for tão descuidado e negligente que não faça o que fazem as aves aos primeiros raios, ou bocejos da luz, saindo todas dos seus ninhos a louvar e dar a alvorada a seu criador.
Ouçam pois todos os que me ouviram, o valente perorador do meu sermão. O que querem dizer aquelas vozes confusas, são estas palavras desarticuladas: Surge qui dormis, et illuminabit te Christus: Tu, descuidado, tu negligente, tu preguiçoso que dormes na hora em que teu Senhor te busca tão desvelado, acorda, desperta, levanta-te, e alumiar-te-á Cristo. Cousa mui notável é, e grande confirmação do que tenho pregado, que sendo tão frequentes no Velho e Novo Testamento as visões sobrenaturais, e aparições in somnis, e madrugando o Senhor neste dia tanto antemanhã, e manifestando-se a tantos, a ninguém aparecesse, nem alumiasse quando dormia.
Alumiou a Madalena, quando não só estava com os olhos abertos, mas feitos duas fontes: alumiou as Marias, quando corriam a levar a nova da ressurreição aos Apóstolos: alumiou aos dous discípulos, quando caminhavam para Emaús: alumiou aos demais quando pela tarde estavam juntos no Cenáculo, a todos vigiando, e a nenhum dormindo. Até os Santos que ressuscitaram na mesma madrugada da ressurreição, primeiro que o Senhor os alumiasse com sua vista, se levantaram eles da sepultura onde dormiam o sono da morte [...]
* In Vol. 2, tomo V, s.l., s.d.
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