segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A evolução da Reforma Protestante, ou, o Concílio Vaticano II

"Há muitas seitas e convicções como há cabeças; este aqui não admite o batismo; aquele rejeita o sacramento do altar; outros acreditam num mundo entre o presente e o dia do julgamento; alguns ensinam que Jesus Cristo não é Deus. Não há ninguém, por mais engraçado que possa ser, que não diz ser inspirado pelo Espírito Santo, e que não aumenta em profecias seus sonhos e devaneios". (Martinho Lutero - "An Meine Kritiker")

O pensamento acima, é a observação de Martinho Lutero, ao efeito de suas próprias doutrinas “reformadas.” Mas também, reproduzem os efeitos claríssimos, que se sucederam ao Concílio Vaticano II. Posteriormente ao comentário inicial, vocês poderão ler, outras frases de Martinho lutero,  sobre as conseqüências práticas da Reforma Protestante, que se observam na realidade pós-conciliar.

Em razão de haver um princípio mestre comum, entre a reforma e o Concílio, consideramos que o segundo é, a evolução do primeiro. Porque se a reforma restringe a Sola Scriptura, a Bíblia, o Concílio Vaticano II, lhe adota, mas abrange também as escrituras dos Pais da Igreja. Os quais são utilizados para fundamentar todas as novidades conciliares, embora não sejam auto-evidentes nos textos conciliares, uma vez que necessitam ser, interpretados a luz desta mesma tradição.

Martinho Lutero, ao rejeitar o Magistério da Igreja e estabelecer a Sola Scriptura, promoveu a ruptura entre o espírito e a letra. Aplicando a “navalha de Ockham” na Igreja, encerrou todo Cristianismo na Bíblia, como se a letra das Sagradas Escrituras, fossem o produto final de Deus, para a humanidade. Dando a entender que toda doutrina cristã, poderia ser apreendida através de uma simples leitura bíblica, sem a necessidade de se possuir o dom do Espírito Santo. Porém, uma vez rejeitado o Magistério Apostólico da Igreja, entraria em cena, o “Magistério” do povo (do qual Lutero, é o primeiro representante).  E é justamente este “Magistério” que o Concílio Vaticano II, tentou e tenta,  implantar na Igreja.

Em todos os Concílios Ecumênicos anteriores, não era proposto aos fiéis, a aceitação de seus textos, como produto final, existia a hermenêutica do Magistério. Aceitar o Magistério de Nicéia, Constantinopla, Trento, Florença, etc era simultaneamente aceitar os próprios Concílios Ecumênicos. Dando nos a entender que o produto final de um Magistério Conciliar, não é a sua letra, mas o ensinamento oral dos Padres reunidos em Concílio na conformidade com a tradição da Igreja. A letra dos Concílios precedentes, é antes o registro escrito do ensinamento oral dos Padres Conciliares, do que todo o ensinamento dos Padres Conciliares. Nenhum Concílio Ecumênico, como nenhum Padre participante, ensinou o “Solo Concilium Scripturae” (Somente as escrituras conciliares).  Óbviamente, quando, oferta-se a Igreja, os textos Conciliares, como produto final de um Magistério Conciliar, encerra-se na letra todo ensinamento deste Concílio, como também toda autoridade Magisterial. E o que restará será apenas um Concílio, sem a hermenêutica do Magistério, que através do pedido de uma hermenêutica da continuidade, exime-se primeiramente de sua função e em segundo lugar, promove a mesma hermenêutica da Reforma Protestante (a própria hermenêutica da ruptura), através da evolução da doutrina “Sola Scriptura.”

Reconhecemos no Concílio Vaticano II, algo ímpar na história dos Concílios Ecumênicos, pois ele é o primeiro que não traz a tradição em alto relevo. Pio XII, na Humani Generis, ensina que “é evidentemente falso, o método que pretende explicar o claro pelo obscuro.”  Isto nos provam os protestantes, uma vez que através da leitura bíblica, nunca chegaram a unidade da fé, como nunca chegaram a formação de um só Corpo.  Se o método protestante produziu este desastre, por que adota-se o mesmo método? Não era a tradição que deveria estar evidente no Concílio? O que deveríamos interpretar a luz da tradição, não é o nosso tempo? Não deveria um Concílio Ecumênico, nos fornecer os meios para fazer esta interpretação?

Segundo o ensinamento de Pio XII (na mesma Humani Generis), a interpretação de um Concílio Ecumênico, não foi confiada aos leigos e nem aos teólogos, mas ao magistério da Igreja. Ora, se o Magistério do Vaticano II, pede nos a hermenêutica da continuidade, através de uma interpretação a luz da tradição, confirma-se ipso facto, a palavra de Dom Lefebvre, quando diz que “A tradição foi excomungada pela Igreja Conciliar.” E isto se dá duplamente, porque conforme a tradição, se fazemos nós a hermenêutica da continuidade e não o Magistério, eximimos o Magistério de sua função estabelecida por Nosso Senhor Jesus Cristo, e consumamos a Revolução na própria Igreja. Em segundo lugar, se é preciso interpretá-lo a luz da tradição, reconhece-se esta excomunhão, pois a tradição não está nele. Dito isto, repito com Pio XII que, não compete a nós leigos, interpretarmos o Concílio (muito menos a luz da tradição que deveria brilhar nele). Mas ao Magistério da Igreja ofertar nos esta interpretação, para que possamos obedecê-la, como foi feito nos Concílios Ecumênicos precedentes. Não queremos aceitar um Concílio separado do Magistério e que o dispensa de sua função, queremos aceitar o Magistério que produziu o Concilio, e que por dever e direito divino, tem o dever de interpretar e ensinar, aquilo mesmo que produziu. Não somos protestantes, não é doutrina apostólica e católica, chegar ao conhecimento da verdade, através da leitura. Não é o testemunho da Igreja Católica, o testemunho que nos deixou Lutero e que nos da a Reforma Protestante, conforme pode se ver a seguir…

"Este não quer o batismo, aquele nega os sacramentos; há quem admita outro mundo entre este e o juízo final, quem ensina que Cristo não é Deus; uns dizem isto, outros aquilo, em breve serão tantas as seitas e tantas as religiões quantas são as cabeças" (Luthers Martin In. Weimar, XVIII, 547 ; De Wett III, 6l ).

"Há muitas seitas e convicções como há cabeças; este aqui não admite o batismo; aquele rejeita o sacramento do altar; outros acreditam num mundo entre o presente e o dia do julgamento; alguns ensinam que Jesus Cristo não é Deus. Não há ninguém, por mais engraçado que possa ser, que não diz ser inspirado pelo Espírito Santo, e que não aumenta em profecias seus sonhos e devaneios". (Martinho Lutero - "An Meine Kritiker")

" Este não aceitara o batismo, aquele nega o sacramento, o outro põe um mundo de diferenças entre este o ultimo dia. Alguns ensinam que Cristo não é Deus, outros ensinam isto e aqueles outras coisas. Existem tantas sitas e credos como existem cabeças. Nenhum aldeão é tão rude como quando tem sonhos e fantasias que crêem haver sido inspirados pelo Espirito Santo e ser um profeta " (De Wette III, 61. Dito em O'Hare, Los Hechos de Lutero, 208)

" Homens , cidadão e campoeses todas as classes entendem o Evangelho melhor que eu ou São Paulo, agora são sábios e se pensam mais cultos que todos os ministros" (Walch XIV, 1360. Dicho en O’Hare, Los Hechos de Lutero, 209. )

" Concedemos - como devido- que muitos dos que eles ( a Igreja Catolica) dizem é verdade: que o Papado tem a Palavra de Deus e o oficio dos Apostolos e que temos recebido a Sagrada Escritura, o Batismo, os Sacramento e o pulpito deles. O que saberiamos destas se não fosse por eles? " Sermão do Evangelho de São João, capítulos 14-16 (1537) no Vol. 24 de LOS TRABAJOS DE LUTERO, San Luis, Missouri, Concordancia, 1961, 304.

sábado, 29 de agosto de 2009

Sermão do Pe. Antônio Vieira contra a Invasão Protestante

A pátria ficou infiel e veja o que foi que aconteceu…

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Pe Antônio Vieira01

(Destaques do autor do blog)

MJCB_small_sfundo Falando sobre a invasão de holandeses protestantes calvinistas no nordeste brasileiro no século XVII, o Padre Antônio Vieira dirige, em um de seus sermões, um grande discurso aos céus clamando as graças de Deus pelas mãos de Sua Mãe Santíssima: a expulsão desses protestantes do solo brasileiro.

Esse grande padre usa de uma linguagem muito diferente da que os sacerdotes modernos, que hoje só falam de "diálogo", seja lá o que signifique essa palavra, enquanto as seitas crescem e os católicos brasileiros se confundem, se tornam tíbios e acabam abandonando a fé. Se nota uma colossal diferença entre o que se pregava e o que se prega hoje.

Padre Antônio Vieira, Rogai por nós.

Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda (1640)

Adaptado

Pregado na Igreja de Nossa Senhora d'Ajuda da cidade da Bahia, no ano de 1640, com o SS. Sacramento Exposto.

    "(...) Não hei de pregar hoje ao povo, não hei de falar com os homens, mais alto hão de subir as minhas palavras; a vosso peito divino se há de dirigir todo o sermão. É este o último dos quinze dias contínuos, em que todas as igrejas desta metrópole, a esse mesmo trono de vossa potente majestade, têm representado suas deprecações; e pois o dia é o último, justo será que nele se acuda também ao último e único remédio. Todos estes dias se cansaram debalde os oradores evangélicos em pregar penitência aos homens; e pois eles se não converteram, quero eu, Senhor, converter-Vos a vós. E tão presumido venho da vossa misericórdia, que ainda que sejamos nós os pecadores, vós haveis de ser hoje o arrependido.(...)

    Muita razão tenho eu de o esperar. Olhai, Senhor, que dizem os hereges insolentes com os sucessos prósperos que vós lhes dais ou permitis: já dizem que, porque a sua, que eles chamam religião, é a verdadeira, por isso Deus os ajuda, e vencem; e porque a nossa é errada e falsa, por isso nos desfavorece, e somos vencidos. Assim o dizem, assim o pregam, e ainda mal, porque não faltará quem os creia. Pois é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões argumentos contra vossa fé? É possível que se hão de ocasionar de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome? Que diga o herege que Deus está holandês? Oh! não o permitais, Deus meu, por quem sois! Não o digo por nós, que pouco ia em que o destruísseis; por vós o digo, e pela honra do vosso santíssimo nome; por vós o digo, e pela honra do vosso santíssimo nome, que tão impudentemente se vê blasfemado: Propter nomen tuum. Já que o pérfido calvinista, dos sucessos que só lhe merecem nossos pecados, faz argumentos da religião, e se jacta insolente e blasfemo de ser a sua a religião verdadeira; veja ele na roda dessa mesma fortuna, que o desvanece, de que parte está a verdade. Os ventos e tempestades que descompõem e derrotam as nossas armadas, derrotes e desbaratem as suas: as doenças e pestes que diminuem e enfraquecem os nossos exércitos, escalem as suas muralhas, e despovoem os seus presídios; os conselhos que, quando vós quereis castigar, se corrompem, em nós sejam alumiados, e neles enfatuados e confusos. Mude a vitória as insígnias, desafrontem-se as cruzes católicas, triunfem as vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada e desenganada a perfídia, que só a fé romana, que professamos, é fé, e só ela a verdadeira e a vossa.(...)

    Parece-vos bem, Senhor, parece-vos bem isto? Que a mim, que sou vosso servo, me oprimais e aflijais, e aos ímpios, e aos inimigos vossos, os favoreçais e ajudeis? Parece-vos bem que sejam eles os prosperados e assistidos de vossa Providência; e nós os deixados de vossa mão, nós os esquecidos de vossa memória, nós o exemplo de vossos rigores, nós o despojo de vossa ira?

    Considerai, Deus meu, e perdoai-me se falo inconsideradamente. Considerai a quem tirais as terras do Brasil, e a quem as dais. Tirais estas terras àqueles mesmos portugueses (e completo eu: seus filhos católicos brasileiros) a quem escolhestes entre todas as nações do mundo para conquistadores da vossa fé, e a quem destes por armas, como insígnia e divisa singular, vossas próprias chagas. E será bem, supremo Senhor e Governador do universo, que às sagradas quinas de Portugal, e às armas e chagas de Cristo, sucedam as heréticas listas de Holanda, rebeldes a seu rei e a Deus? Será bem que estas se vejam tremular ao vento vitoriosas, e aquelas abatidas, arrastadas, e ignominiosamente rendidas? E que fareis, ou que será feito de vosso glorioso nome em casos de tanta afronta?(...)

    Assim fostes servido que entrássemos nestes novos mundos, tão honrada e tão gloriosamente; e assim permitis que saiamos agora com tanta afronta e ignomínia.(...)  Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas há baixio no Oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios e portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranham das feras e monstros marinhos, - que as terras que assim ganhamos, as hajamos de perder assim?(...) Ganhá-las para as não lograr, desgraça foi, e não ventura: possuí-las para as perder, castigo de vossa ira, Senhor, e não mercê nem favor de vossa liberalidade. Se determináveis das estas terras aos piratas da Holanda, por que lhas não destes enquanto eram agrestes e incultas, senão agora? Tantos serviços vos tem feito esta gente pervertida e apóstata, que nos mandastes primeiro cá por seus aposentadores, para lhes lavrarmos as terras, para lhes edificarmos as cidades, e depois de cultivadas e enriquecidas, lhas entregardes? (...) Mas pois vós, Senhor, o quereis e ordenais assim, fazei o que fordes servido. Entregai aos holandeses o Brasil, entregai-lhes as Índias, entregai-lhes as Espanhas, entregai-lhes quanto temos e possuímos, ponde em suas mãos o mundo: e a nós, os portugueses e espanhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só vos digo e lembro, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia, e que os não tenhais(...) Holanda vos dará os apostólicos conquistadores que levem pelo mundo os estandartes da cruz. Holanda vos dará os pregadores evangélicos que semeiem nas terras dos bárbaros a doutrina católica, e a reguem com o próprio sangue. Holanda edificará templos, levantará altares, consagrará sacerdotes, e oferecerá o sacrifício de vosso santíssimo corpo. Holanda enfim vos servirá e venerará tão religiosamente, como em Amsterdã, Meldeburgo e Flesinga, e em todas as outras colônias daquele frio e alagado inferno se está fazendo todos os dias...

    Se acaso for assim, e está determinado em vosso secreto juízo que entrem os hereges na Bahia, o que só vos represento humildemente, e muito deveras, é que, antes da execução da sentença, repareis bem, Senhor, no que vos pode suceder depois, e que o consulteis com vosso coração enquanto é tempo; porque melhor será arrepender agora, que quando o mal passado não tenha remédio. Bem estais na intenção e alusão com que digo isto, e na razão fundada em vós mesmo, que tenho para o dizer. Também antes do dilúvio estáveis vós mui colérico e irado contra os homens, e por mais que Noé orava em todos aqueles cem anos nunca houve remédio para que se aplacasse vossa ira. Romperam-se enfim as cataratas do céu, cresceu o mar até o cume dos montes, alagou-se o mundo todo: - já estará satisfeita vossa justiça. Senão quando, ao terceiro dia, começaram a aboiar os corpos mortos, e a surgir e aparecer em multidão infinita aquelas figuras pálidas, e então se representou sobre as ondas a mais triste e funesta tragédia que nunca viram os anjos, que homens, que a vissem, não os havia. Vistes vós também, como se o vísseis de novo, aquele lastimosíssimo espetáculo, e posto que não chorastes, porque ainda não tínheis olhos capazes de lágrimas, enterneceram-se porém as entranhas de vossa divindade com tão intrínseca dor (Tuctus dolore dordis intrinsecus) que do modo que em vós cabe arrependimento, vos arrependestes do que tínheis feito ao mundo, e foi tão inteira a vossa contrição, que não só tivestes pesar do passado, senão propósito firme de nunca mais o fazer. Este sois, Senhor; e pois sois este, não vos tomeis com vosso coração. Para que é fazer agora valentias contra ele, se o seu sentimento, e o vosso, as há de pagar depois? Já que as execuções de vossa justiça custam arrependimentos à vossa bondade; vede o que fazeis, antes que o façais, não vos aconteça outra. E para que o vejais com cores humanas, que já vos não são estranhas, dai-me que eu vos represente primeiro ao vivo as lástimas e misérias deste novo dilúvio; e se esta representação vos não enternecer, e tiverdes entranhas para o ver sem grande dor, executai-o embora.

    Imaginemos pois (o que até fingido e imaginado faz horror) imaginemos os que vêm a Bahia e o resto do Brasil a mão dos holandeses; que é que há de suceder em tal caso? Entrarão por esta cidade com fúria de vencedores e de hereges; não perdoarão a estado, sexo, nem a idade; com os fios dos mesmos alfanjes medirão a todos. Chorarão as mulheres, vendo que se não guarda decoro à sua honestidade: chorarão os velhos, vendo que se não guarda respeito às suas cãs: chorarão os sacerdotes, vendo que até as coroas sagradas os não defendem; chorarão finalmente todos, e entre todos mais lastimosamente os inocentes, porque nem a esses perdoará a desumanidade herética. Sei eu, Senhor, que só por amor dos inocentes dissestes vós alguma hora que não era bem castigar Nínive. Mas não sei que tempos, nem que desgraça é esta nossa, que até a mesma inocência vos não abranda. Pois também vós, Senhor, vos há de alcançar parte do castigo, também a vós há de chegar.

    Entrarão os hereges nesta igreja e nas outras, arrebatarão essa custódia em que agora estais adorado dos anjos, tomarão os cálices e vasos sagrados, e aplica-los-ão a suas nefandas embriaguezes; derribarão dos altares os vultos e estátuas dos santos, deforma-las-ão a cutiladas, e metê-las-ão no fogo: e não perdoarão as mãos furiosas e sacrílegas, nem às imagens tremendas de Cristo crucificado, nem às da virgem Maria. Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas em vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo corpo; mas nas de virgem Maria, nas de vossa santíssima mãe, não sei como isto pode estar com a piedade e amor de filho. No Monte Calvário esteve esta Senhora sempre ao pé da cruz, e com serem aqueles algozes tão descorteses e cruéis, nenhum se atreveu a lhe tocar, nem a lhe perder o respeito. Assim foi, e assim havia de ser, porque assim o tínheis vós prometido pelo profeta: Flagellum non apropinquabit tabernaculo tuo. Pois, filho da virgem Maria, se tanto cuidado tivestes então do respeito e decoro de vossa mãe, como consentis agora que se lhe façam tantos desacatos? Nem me digais, Senhor, que lá era a pessoa, cá a imagem. Imagem somente da mesma virgem era a arca do testamento, e só porque Oza a quis tocar, lhe tirastes a vida. Pois se então havia tanto rigor para quem ofendia a imagem de Maria, por que o não há também agora? Bastava então qualquer dos outros desacatos às coisas sagradas, para uma severíssima demonstração vossa, ainda milagrosa. Se a Jeroboão, porque levantou a mão para um profeta, se lhe secou logo o braço milagrosamente, como aos hereges, depois de se atreverem a afrontar vossos santos, lhes ficam ainda braços para outros delitos? Se a Baltasar, por beber pelos vasos do templo, em que não se consagrava vosso sangue, o privastes da vida e do reino; por que vivem os hereges que convertem vossos cálices a usos profanos? Já não há três dedos que escrevam sentença de morte contra sacrílegos?

    Enfim, Senhor, despojados assim os templos, e derribados os altares, acabar-se-á o culto divino: nascerá erva nas igrejas como nos campos, nem haverá quem nelas entre. Passará um dia de Natal e não haverá memória de vosso nascimento: passará a Quaresma e a Semana Santa, e não se celebrarão os mistérios de vossa paixão. Chorarão as pedras das ruas, como diz Jeremias que choraram as de Jerusalém destruída: Viae Sion lugent, eo quod non sint, qui veniant ad solemnitatem. Ver-se-ão ermas e solitárias, e que as não pisa a devoção dos fiéis, como costumava em semelhantes dias. Não haverá missas, nem altares, nem sacerdotes que as digam: morrerão os católicos sem confissão nem sacramento: pregar-se-ão heresias nestes mesmos púlpitos, e em lugar de S; Jerônimo e Santo Agostinho, ouvir-se-ão neles os infames nomes de Calvino e de Lutero: beberão a falsa doutrina os inocentes que ficarem, relíquias dos portugueses: e chegaremos a estado que, se perguntarem aos filhos e netos dos que aqui estão: Menino, de que seita sois? Um responderá, eu sou calvinista; outro, eu sou luterano. Pois isto se há de sofrer, meu Deus? Quando quisestes entregar vossas ovelhas a Pedro, examinaste-lo três vezes, se vos amava: Diligis me, diligis me, diligis me? E agora as entregais desta maneira, não a pastores, senão a lobos? Sois o mesmo, ou sois outro? Aos hereges o vosso rebanho? Aos hereges as almas? Como tenho dito, nomeei almas, não vos quero dizer mais. Já sei, Senhor, que vos haveis de enternecer e arrepender, e que não haveis de ter coração para ver tais lástimas e tais estragos. E se assim é, (que assim o estão prometendo vossas entranhas piedosíssimas) se é que há de haver dor, se é que há de haver arrependimento depois, cessem as iras, cessem a execuções, agora; não é justo vos contente antes o de que vos há de pesar em algum tempo."

Leia este Sermão completo.

Leia mais sobre o Pe. Antônio Vieira.

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A história seguiu seu rumo e os protestantes holandeses foram expulsos, mas o povo ao invés de se manter convertido abandonou a fé cada vez mais. É bem certo que a rebeldia mundial do clero bem agravou a situação, mas se o povo houvesse se mantido perseverante na fé a vocação do Brasil talvez houvesse sido preservada. Agora, só o cumprimento das determinações de Nossa Senhora e o rosário poderão nos dar algum alívio.

Abaixo a casamata dos lobos! Rezemos o rosário!

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas

Carlos Nougué

Anti Sedevacante 2

Parte IV

Índice geral > Tradição católica vs Vaticano II > Viver e sobreviver > Falsas Soluções >
O Sedevacantismo

Passar-se-á, agora, a responder a cada item da exposição que fizemos da tese de A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles. (Essa exposição, numerada, se encontra na Parte II deste artigo, neste mesmo site.) O objetivo de tais respostas particulares é não deixar sem esclarecimento nem sequer o que não é central na tese adversária, e isso porque, conquanto não central, nem por isso deixa de ter importância e conexão no conjunto da tese.

1) Em resposta ao item 1, deve-se dizer que pela graça santificante certamente se dá um novo nascimento, o do novo homem em Cristo (“Não te maravilhes de ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai: assim é todo aquele que é nascido do Espírito”, Jo., III, 7-8; “sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre”, I Ped., I, 23; “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram: eis que tudo se fez novo”, II Coríntios, V, 17); assim como também certamente a fé teologal é infalível em seu ato interno (cf. Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 3). Sucede todavia que como esse ato é, nesta vida, essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe (cf. nossa Refutação, e especialmente Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 290), para que saibamos com toda a certeza em que devemos crer — e pois o que é o erro ou heresia —, as verdades de fé têm de ser propostas por um mestre infalível em seu ato externo: Nosso Senhor Jesus Cristo e o Magistério da Igreja, este como prolongamento d’Aquele e cingido aos princípios de fé dados pela Revelação e pelo Traditum.

2) Em resposta ao 2, deve-se dizer que a afirmação segundo a qual “a fé teologal e a graça santificante são a essência mesma do Cristianismo, e delas depende tudo o mais”, já em si mereceria reparos: porque, com efeito, não é possível a caridade não ser da essência mesma da vida do cristão, se é ela “o vínculo da perfeição” (Col., III, 14); se “ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até o ponto de transportar montes, se não tiver caridade, não sou nada” (I Cor., XIII, 2; grifo nosso); se agora “permanecem [...] a fé, a esperança e a caridade; porém a maior delas é a caridade”, que “nunca há de acabar” (I Cor., XIII, 13 e 8); enquanto passarão, no céu, não só as profecias e a esperança, mas a própria fé. Quanto ao que aqui mais importa, porém, o fato é que o fim da civilização cristã, a partir do século XIII, se deveu não a um crescente culto do dever em geral e a uma crescente obediência cega às autoridades da Igreja, e sim a um crescente culto do dever meramente político e a uma crescentemente exclusiva obediência às autoridades temporais — em detrimento não só do verdadeiro dever de religião para com Cristo, mas do devido assentimento e obediência a seu Vigário. É bem verdade que mesmo a defesa católica, incluída a tomista, contra tal tendência aceitou defender a moral no novo terreno perigosamente subjetivo da consciência: “Embora”, escreve o Padre Calderón em Concilio Vaticano II: la religión del hombre, “sustentassem a legitimidade da sabedoria cristã como regra de conduta, deixaram que se estabelecesse a consciência como regra imediata, o que, conquanto não chegue a ser falso, é desnecessário e inconvenientemente expresso. Pois bem”, prossegue o Padre, “à medida que a crítica que o pensamento moderno e as novas ciências faziam à teologia e à filosofia escolástica foi ganhando terreno, introduzindo o veneno do subjetivismo, o tribunal interior da consciência ia livrando-se da tirania da teologia, abrindo as portas para relativismo moral.” Mas uma coisa é reconhecê-lo, e reconhecê-lo como algo que conduziria ao Concílio Vaticano II, o que é de todo correto; outra, muito diferente, é atribuir à docilidade e obediência ao magistério da Igreja tal efeito, o que, por quanto vimos, é de todo falso. 

3) Em resposta ao 3, deve-se dizer que sem dúvida a graça não é um mero auxílio ao bom comportamento e ao combate aos vícios e paixões; mas não deixa de sê-lo também, e em alto grau; e, se nos ordena ela, antes de tudo, a prestar a devida glória a Deus, ordena-nos também a que tenhamos a devida docilidade e obediência ao magistério da Igreja, que, como vimos na “Refutação da primeira idéia básica da tese adversária”, é a regra próxima da fé. A fé, obviamente, não decorre da obediência, dando-se antes o inverso; mas, com respeito ao magistério da Igreja, a implica. Ora, a heresia protestante minou a fé solapando, antes de tudo e precisamente, sua ordenação à docilidade e obediência ao magistério da Igreja, porque, com efeito, a esse solapar leva não só o princípio luterano da sola scriptura, mas também o do livre exame, pelo qual, precisamente, se “atribui o carisma da infalível verdade à fé individual” (P. Calderón, ibid., p. 291). Vê-se, pois, em que ponto e de que modo se tocam a tese sedevacantista aqui tratada e a heresia luterana (mas veremos que, em última instância, todas as versões do sedevacantismo têm este ponto de contato com o protestantismo).

4) Em resposta ao 4, deve-se dizer que, se a razão formal da fé de fato não é propriamente a autoridade do magistério eclesiástico, mas a mesma autoridade divina e sua Revelação (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 1, corpus: “[...] pois a fé de que falamos não dá seu assentimento a algo que não seja revelado por Deus [...]”; Suma contra os Gentios, I, IX, 3 (53): “Ora, não cremos em verdades que excedam a capacidade da razão humana se não tiverem sido reveladas por Deus)”, permanece, todavia, o fato já firmado de que é o magistério da Igreja a regra próxima da fé. Em outras palavras: não podemos crer senão no que a Igreja afiança tratar-se de verdade divinamente revelada (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 10, corpus: “Tem autoridade para fazê-lo [ou seja, para publicar um Símbolo da fé] quem pode determinar em última instância o que é de fé, para que todos possam a ela aderir de maneira inabalável. Isso, todavia, é da alçada do Sumo Pontífice [...].) Não é pois verdade que o tomar o magistério da Igreja como regra próxima da fé “reduz a fé teologal a mera fé humana”; antes pelo contrário, é o que assegura tratar-se de fé efetivamente sobrenatural e não meramente humana. E, se por um lado é a fé sobrenatural “a única que salva”, por outro lado, repita-se, só o magistério da Igreja nos pode afiançar que se trata de fé teologal, e não de nenhuma contrafação sua.

5) Em resposta ao 5, deve-se dizer que efetivamente, como estabelece Santo Tomás de Aquino, toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. Assim, como diz a tese adversária, qualquer ato da potência intelectiva, potência que tem por objetivo a verdade, será bom se alcançar a verdade; em outras palavras, não tornarão virtuosa a inteligência humana senão os atos seus que alcancem o verdadeiro.

6) Em resposta ao 6, deve-se dizer que de fato nossa inteligência não tem capacidade de conhecer infalivelmente ou com certeza as verdades divinas; com efeito, não as puderam conhecer assim, ou seja, infalivelmente ou com certeza, nem sequer homens como Platão e Aristóteles. Também é verdade, como já dito, que enquanto virtude teologal infusa a fé é infalível em seu ato interno, ou seja, na adesão da inteligência às verdades divinas; mas, como também já visto, não é verdade que seja tal ato ou adesão o que torna discerníveis ou certas aos homens as verdades de fé, porque o que as torna discerníveis ou certas é a regra próxima da fé: o magistério da Igreja. Por outro lado, ao contrário do que faz a tese adversária, deve-se falar de todo diferentemente quando se trata dos anjos ou de comparar o intelecto humano e o angélico; peca a tese adversária por simplificação “angelista”, um pouco à maneira não só de um Jacques Maritain, mas até de um Descartes ou de um Malebranche. Sim, porque (e citemos extensamente, uma vez mais, o Padre Calderón, ibid., pp. 288-289), “naturalmente, [de potentia absoluta] Deus poderia ter proposto [aos homens] as verdades de fé por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como ocorreu de fato com os anjos. No primeiro instante de sua criação, os anjos ainda não tinham a luz da glória, mas a luz da fé pela qual deviam crer em certas verdades reveladas por Deus. Pois bem, nem sequer a natureza angélica pode conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus formou sobrenaturalmente em sua inteligência certas espécies ao modo de revelação interior. Mas para os homens não convinha essa maneira de revelação, porque ela vai contra sua natureza social. É próprio de homem chegar à verdade ensinado pelo magistério oral de suas autoridades naturais. Daí que Deus, que faz tudo com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma autoridade divina”. Assim é que, se de fato, como diz a tese adversária, sem aquela adesão da inteligência às verdades de fé não se ordenaria o homem a seu fim sobrenatural, nem por isso, e muito ao contrário do que diz a referida tese, tal adesão não se dá por uma suposta “ciência infusa” ao modo angélico, nem o cristão é provido da prerrogativa de inerrância no que diz respeito a quanto necessita para a sua salvação senão enquanto adere aos dados da fé mediante a regra próxima desta, que por própria dotação e assistência divina é o mesmo carisma magisterial da Igreja. 

7) Em resposta ao 7, deve-se dizer que sem dúvida os fiéis devem lutar por sua fé, razão por que, como diz Santo Tomás, Deus não os deixa cair em erro (“si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium”, De veritate, q. 14, a. 2). Aquela luta convém com o nosso livre-arbítrio, que não é suprimido pela graça (assim, Nossa Senhora não deixa de exercer seu livre-arbítrio ao dizer “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”, ainda que fosse imperiosa e ineludível a graça de que era cheia para poder ser a Mãe de Deus); enquanto este “não deixar cair em erro” convém com a graça divina (imenso mistério: tudo é graça, mas permanece o livre-arbítrio; e, conquanto a predestinação dos eleitos seja anterior à previsão de seus méritos, nem por isso deixa de dizer São Pedro (II, I, 10), para explicar que os méritos são causa não da predestinação, mas sim da salvação efetiva: “Portanto, irmãos, ponde cada vez maior cuidado em tornardes certa a vossa vocação e eleição por meio das boas obras, porque fazendo isto não perecereis jamais”). Mas nada disso implica nenhum “instinto” da fé ou, em outras palavras, nenhum sensus fidei individual certo sem confirmação do magistério da Igreja, “instinto” que como já vimos é de corte luterano; implica, porém, a docilidade ao mesmo magistério da Igreja, o único que, como regra próxima da fé — e ao contrário do que diz a tese adversária —, é capaz de fazer ter certeza com relação aos artigos e sutilezas da fé e, pois, de fazer evitar ou rejeitar os erros com respeito a eles.

8) Em resposta ao 8, deve-se dizer que, obviamente, sem professar a existência de Deus ninguém pode professar nenhuns artigos e sutilezas da fé. E, se o afirmar a existência de Deus pertence antes aos preâmbulos da fé, Deus mesmo no-la revelou porque, no estado de natureza ferida, o obscurecimento ou enceguecimento de nosso intelecto por defeitos físicos ou pelas paixões nos pode levar até ao próprio ateísmo (Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 1, a. 2: “Até com relação ao que a razão humana pode investigar a respeito de Deus era preciso que o homem também fosse instruído por revelação divina. Com efeito, a verdade de Deus, investigada pela razão humana, chegaria apenas a poucos [indivíduos], e depois de longo tempo, e com mescla de muitos erros [...]: no entanto, do conhecimento desta verdade depende a salvação do homem, que se encontra em Deus. Para que a salvação, portanto, chegasse aos homens conveniente e certamente, foi necessário que eles fossem instruídos sobre o divino por revelação divina”). Naturalmente, esse mesmo ato de professar a existência de Deus e seus corolários pode dar-se e se dá no interior de almas individuais; com efeito, dissemos nós na “Refutação da primeira idéia básica da tese adversária”: “Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata.” “Mas o católico”, prosseguíamos, “incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé [ou, de certo modo e em certa medida, até pela razão natural, no tocante ao que de Deus pode ela investigar e concluir] ‘se o confirmar’, como diz o Padre Calderón (em A Candeia Debaixo do Alqueire), ‘e no grau em que o confirmar o magistério da Igreja’.” Ora, por isso mesmo não é exato dizer, como o faz a tese adversária, que “as verdades em que o cristão deve crer são-nos como que reveladas por Deus” individualmente, nem, muito menos, que, se “tais verdades nos são ordinariamente propostas pela pregação dos homens da Igreja, e conquanto comumente tal pregação seja a condição para a crença nelas, dizer condição não quer dizer suficiência — ela não basta para que tenhamos fé, e isso porque com ela não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: não tem ela autoridade para tal, ainda que confirmada por milagres. O ato primordial de fé é posto, é infundido por Deus mesmo, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. Por tudo quanto já vimos, tudo isso não passa, de certo modo, de luteranismo mitigado: porque, ao contrário do que quer fazer crer a tese adversária, o magistério da Igreja, enquanto prolongamento de Cristo mesmo e enquanto regra próxima para a crença dos fiéis, é a própria autoridade vicária em matéria de fé. É verdade que não basta o magistério da Igreja para que tenhamos fé; mas é de todo inverdade que, para este efeito, ele não possa ter senão caráter de persuasão; ao contrário, é ele a única garantia de verdade e certeza com respeito à sobrenaturalidade dos dados da fé e, de certo modo e em certa medida, como vimos, até à própria naturalidade de seus preâmbulos.

9) Em resposta ao 9, deve-se dizer que a solução para o dilema causado pelo Concílio Vaticano II e pelo Magistério que dele emerge não pode dar-se com o abandono da “verdadeira docilidade que o católico deve guardar diante do magistério da Igreja” (Padre Calderón, ibid., p. 75). Não se trata de arrostar um “falso dogma de obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos”, como propõe a tese adversária. Não é em si veraz nenhuma oposição entre “o governo do Deus invisível da pura fé” e “um soberano [o Papa] evidente e acessível aos sentidos” que pudesse mudar-se “de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor”. “A Igreja”, diz ainda o Padre Calderón (idem), “é fundada sobre Pedro, e a solidez desta Pedra reside principalmente na autoridade de seu magistério. Por isso, para romper o dilema atual, não se deve prejulgar a credibilidade do magistério com algum critério diferente do que oferece de si mesma a legítima autoridade, porque então se atentará contra a docilidade católica, que tem como única regra próxima da fé o magistério vivo da Igreja.” Este ponto, porém, se desenvolverá na próxima parte deste artigo, quando se refutar a sedevacantista Tese de Cassiciacum, exposta pela primeira vez, em 1973, por M. Guérard des Lauriers, e segundo a qual os papas conciliares são materialiter (materialmente) papas, mas não o são formaliter (formalmente). Veremos então que esta tese peca desde a base, ou seja, desde a utilização imprópria, incomum e obscura de uma analogia da autoridade, e da autoridade papal em particular, com o sínolo humano de corpo e alma.[1]

10) Em resposta ao 10, deve-se dizer que afirmar, como o faz a tese adversária, que “a luta pela fé foi absorvida e neutralizada numa obediência beata, cega e incondicional ao rei terreno” é, por tudo quanto vimos aqui, pelo menos equívoco. É verdade que tal obediência “implica um axioma imoral: o de que a ordem do superior livra o subordinado de qualquer responsabilidade própria”; mas, no caso, de uma responsabilidade própria diante de Deus e da fé. Ora, o “rei terreno”, que é a maneira imprópria e pejorativa como se refere ao Papa a tese adversária, não é “rei” senão por prolongamento e delegação da própria Realeza de Cristo. Logo, obedecer e ser dócil ao “rei terreno” é, em princípio, cumprir precisamente com a devida responsabilidade diante de Deus e da fé. Para que se incorresse, em tal caso, na referida imoralidade, seria preciso ou que o referido “rei” de algum modo não fosse “rei” (opinião defendida, exatamente, pelos sedevacantistas), ou que, conquanto “rei”, não empenhasse a sua “realeza”, isto é: não comprometesse, como Papa, sua suprema autoridade (tese do Padre Calderón, que decorre, naturalmente, dos princípios por que se fundou e se mantém a Sociedade São Pio X, e à qual, como é óbvio, aderimos plenamente). Ora, ao tratar da virtude da obediência, o Doutor Comum naturalmente a põe abaixo das virtudes teologais (fé, esperança e caridade), porque, ainda se tratando de obediência a Deus, que implica o desapego dos bens criados e o desprezo da vontade própria, a obediência não é senão um meio para aquela adesão. Corretamente, portanto, afirma a tese adversária que “as virtudes teologais sobrepujam todas as virtudes morais, porque concernem diretamente a Deus, enquanto estas concernem apenas ao meio mais adequado para nosso fim último, que é Deus mesmo. E, se é verdade que entre as virtudes morais a obediência ressalta, justamente por implicar o desprezo do maior dos bens (a vontade própria), isso em nada muda o fato de que a obediência é uma virtude subalterna, que depende da mesma subordinação às virtudes mais altas para que ela própria seja virtude. Faltando essa subordinação, deixará a obediência de ser virtude, e se mudará em vício”. Sucede, porém, que a fé a que a obediência deve subordinar-se depende, para sua certeza, da própria autoridade do magistério da Igreja enquanto regra próxima. Logo, a virtude da obediência só se mudará em vício ou se se ordenar a um Magistério que deixe de comprometer sua autoridade enquanto infalivelmente assistida pelo Espírito Santo, ou se se ordenar anterior ou preferentemente a outra autoridade, a saber, a autoridade política, com o que se rompe a devida e essencial subordinação do temporal ao espiritual. E, com efeito, ambas as coisas ocorreram desde o começo da ruína da Cristandade até o Concílio Vaticano II, mas aquela em decorrência desta, o que porém não consegue perceber quem defenda a tese de Pacheco Salles: porque, como vimos suficientemente, para sustentar sua conclusão sedevacantista, ela opera tanto uma reconstrução ideal da história quanto um recorte da doutrina dos doutores da Igreja, especialmente Santo Tomás de Aquino, e do próprio magistério da Igreja. Se assim não fosse, não se vê como se coadunariam a tese adversária de que o magistério da Igreja não pode ter sobre o fiel católico senão caráter de persuasão e a seguinte declaração magisterial (cujo teor também se encontra em numerosíssimos outros documentos do magistério e na totalidade da obra dos doutores da Igreja):

● “Por conseguinte, Nós declaramos, dizemos e definimos que é absolutamente necessário para a salvação de qualquer criatura humana ser submissa ao pontífice romano” (Bonifácio VIII, Bula Unam sanctam, 18 de novembro de 1302).

11) Em resposta ao 11, deve-se dizer que, segundo o visto nas primeiras partes deste artigo, o processo de que resultou o Concílio Vaticano II não é o indicado por Pacheco Salles, nem pela conclusão decorrente de sua tese, a saber: “Com uma cristandade inerme, ou seja, destituída do sensus fidei, que é a razão formal da autoridade e pois da legitimidade da Sede de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo inimigo – e a partir desse momento estará propriamente vacante.” Já se mostrou a insustentabilidade daquela premissa, restando porém por refutar a conclusão mesma de sedevacância, que é o que faremos ao longo da refutação da Tese de Cassiciacum e da dos sedevacantistas que se agarram, para defender sua tese, sobretudo à Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV.[2]

(Continua, com a exposição e o começo da refutação da Tese de Cassiciacum.)


[1] Para a Tese de Cassiciacum, cf. a revista Sodalitium, especialmente a série “La Papauté matérielle”, ed. francesa, nos 46, 48 e 49, e a “Entrevista a Monseñor Guérard des Lauriers”, no 13.

[2] Repita-se, uma vez mais: não dizemos que Pacheco Salles sustente o sedevacantismo em A Figura deste Mundo. Mas dizemos que é precisamente do argumento esgrimido nessa obra que se valem muitos sedevacantistas isolados. Cf. nota 6 da primeira seção do artigo.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

28 de Agosto, Dia de Santo Agostinho!

santo agostinho

Santo Agostinho, rogai por nós!

Festa da Santa Cruz em Nova Friburgo: estão todos convidados!

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Carlos Nougué

No dia 14 de setembro comemora-se a Festa da Exaltação da Santa Cruz. Data de muito tempo a origem remota desta festa. Com efeito, para celebrar a invenção (achado) da Cruz de Cristo por Santa Helena, mãe do imperador Constantino, já em 14 de setembro de 335 se dedicaram ao Santo Lenho as basílicas constantinianas. Mas a atual Festa da Santa Cruz comemora particularmente a retomada, em 628, do Lenho Sagrado aos persas. Estes, ao conquistar Jerusalém, se haviam apoderado da relíquia suprema, e quatorze anos depois, no referido ano, o imperador Heráclito os derrotou e a reconquistou para a Cristandade. Entrando na Cidade Santa, quis portá-la ele próprio, com grande magnificência, para recolocá-la no Calvário; mas uma força invisível não o deixou prosseguir. Zacarias, Bispo de Jerusalém, testemunhando-o, advertiu: “Com essas vestes estais longe de imitar a Jesus Cristo e a humildade que levou consigo até a Cruz.” Heráclito despojou-se das ricas vestes que trajava, descalçou-se e cobriu-se com um manto ordinário, e pôde então, já sem dificuldade, levar a Santa Cruz até o Calvário.

“Quanto a nós”, como diz São Paulo (Gál., VI, 14), “devemos gloriar-nos na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo; n’Ele está a nossa salvação, vida e ressurreição. Por Ele fomos salvos e libertados”. E saudemo-La com a liturgia: “Dulce lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera: quae sola fuisti digna sustinere Regem caelorum et Dominum. Alleluia” (“Doce Lenho, doces cravos, que precioso fardo suportais! Somente tu foste digna, ó Cruz, de sustentar o Senhor e Rei dos céus. Aleluia)”.

Pois bem, no dia 13 de setembro próximo se comemorará, no beneditino e tradicional Mosteiro da Santa Cruz, de que sou oblato, a Festa da Santa Cruz. Além da celebração da Santa Missa, encenar-se-á, então, um fragmento do Auto da Lusitânia, do grande teatrólogo católico Gil Vicente; executar-se-ão peças musicais barrocas; e dar-se-ão algumas palestras, por nosso Prior, Dom Tomás de Aquino, por este que vos escreve e outros. Entre os temas destas palestras, “A vida monástica beneditina” e “A Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

No sábado 12 de setembro, realizar-se-á um grande debate sobre o livro do Padre Álvaro Calderón A Candeia Debaixo do Alqueire — Questão Disputada sobre a Autoridade Doutrinal do Magistério Eclesiástico a Partir do Concílio Vaticano II, recém-publicado pelas Edições Mosteiro da Santa Cruz e pelo Angelicum — Instituto Brasileiro de Filosofia e Estudos Tomistas.

Estão todos convidados a participar das atividades destes dois dias. Venham sobretudo assistir à Santa Missa e receber os sacramentos da confissão e da eucaristia. Deixem-se enlevar pelo solene rito tridentino e seu canto gregoriano. Hospedem-se (os homens) em nosso Mosteiro e vivam por alguns dias o ambiente de silêncio e recolhimento neste canto do Céu na terra. Façam as refeições com os monges, escutando a leitura em retrotom de alguma obra edificante. Visitem nossas amplas bibliotecas e leiam algumas das raridades católicas que contêm. Repousem, enfim, no meio de uma paisagem de ciprestes, pinheiros e eucaliptos. Para as mulheres, pode-se conseguir alojamento em casas de fiéis.

Eis o endereço e demais dados do Mosteiro: Estrada Alcino Cunha Ferraz, km 2, Janela das Andorinhas, Alto dos Michéis, Nova Friburgo, RJ; endereço para correspondência: Caixa Postal 96582 – Nova Friburgo – RJ – 28610-974; telefone (das 14:30h às 16:30h de terça a sábado): (22) 2540-1367; fax: (22) 2540-1218; e-mail: mostsantacruz@uol.com.br .

Como, porém, dado o regime de clausura, oração e trabalho dos monges, nem sempre é fácil comunicar-se com eles, peço aos interessados em participar dos dois dias de comemoração da Santa Cruz que me escrevam para o seguinte e-mail: carlosnougue@hotmail.com. Necessitamos saber quantos virão, para providenciar adequadamente sua hospedagem e alimentação. Além disso, aos que nunca vieram ao Mosteiro darei indicações precisas de como chegar a ele.

* * *

“A luta que precede a boa obra que se pretende fazer é como a antífona que precede o salmo solene por cantar” (Padre Pio de Pietrelcina).

“Afasta-te do mundo. Escuta-me: um se afoga em alto-mar, outro se afoga num copo d’água. Que diferença há entre um e outro? Não estão mortos os dois?” (Padre Pio de Pietrelcina).

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Conheça e faça parte do Networking do Index Bonorvm

parceiros01 Networking é uma expressão negocial usada para denominar uma rede de contatos pessoais e profissionais, e se tornou essencial para quem quer se manter ativo no mercado de trabalho.

Foi tomado erroneamente por algumas pessoas como uma forma de conhecer gente influente, mas o network, ou em português claro, o trabalho em rede, é uma magnífica ferramenta para se conseguir otimizar o trabalho e as necessidades em geral em uma sociedade de massas como a atual.

Com efeito, o networking é apenas mais um instrumento da vida contemporânea e só será realmente eficaz se o vincularmos ao cultivo e à promoção de boas relações, baseando-nos em condutas éticas e valores.

O comportamento ético-cristão é primordial em tudo nesta atividade, assim como em tudo de resto na vida. Networking, portanto, não é conhecer pessoas para usufruir do que elas podem oferecer e ponto final. Deve ser baseada na lei do ganha-ganha ou em vocabulário mais familiar à cristandade, na caridade, na justiça e na prudência.

Fica, então, o convite ao católico apostólico romano que venha participar da nossa networking, bastando para tanto cadastrar-se em nossa lista de contatos do yahoo grupos. Botão de inscrição em: http://indexbonorvm.blogspot.com .

Sejam bem-vindos!

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Dostoievisk na litúrgia

 

SE DEUS NÃO EXISTE,

TUDO É PERMITIDO…

ATÉ MESMO ABUSOS

NA LITÚRGIA! MAS

PARA QUE TODOS

SEJAM UM? OU PARA

QUE TODOS SEJAM,

TODOS?

Clique aqui, para ver a fonte, e as imagens ampliadas.

Missa nova afro

Isso se chama inculturação, meu irmão!

missa nova budista e hinduísta

missa nova "juvenil"

missa nova e eleição de "miss paróquia"

missa nova e palhacinhos


missa nova e dança

missa nova, sacerdócio novo

Mitra estilo queijo

'ta demais tua missinha, tche!

Oh yeah!

             Missa  Pic-nic

Premio de bom gosto e elegância

missa nova e dignidade do culto

Legal o cálice!

Missa frente ao povo...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Uma aula de humanismo para o Pe Fábio Melo

“todo humanismo é inumano, que todo humanismo é antropocêntrico e ateu; que somente submetendo-se o homem à Divindade, reconhecendo seu nada sob o abismo da imensidade divina, é como pode recuperar a sua dignidade. Não é pensando em reabilitar a criatura humana que se pode ir ao Criador, porque então Deus se converte em simples meio de dignificar o homem. É por Deus mesmo que devemos ir a Deus. E em sua luz ver sua luz.” Leopoldo Eugenio Palácios

 

Anápolis, 27 de novembro de 2006

Alguns elementos da crítica de Leopoldo Eulogio Palácios e Julio Meinvielle ao humanismo maritainiano

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Devendo oferecer uma contribuição para a primeira sessão da SITA em Anápolis, desejaria apresentar nesta breve comunicação alguns argumentos desenvolvidos por dois respeitados pensadores católicos do mundo hispânico acerca dos problemas suscitados pela teoria humanista do Sr. Jacques Maritain: Leopoldo Eulogio Palácios e Júlio Meinvielle.

Leopoldo Eulogio Palácios nasceu em Madri aos 31 de janeiro de 1912. Foi catedrático de Filosofia na Universidade Complutense de Madrid, lecionou na Universidade Laval de Quebec e membro da Real Academia de Ciências Morais e Políticas da Espanha. Autor de vasta obra, recebeu o prêmio nacional de literatura da Espanha.

Julio Meinvielle, sacerdote católico argentino (1905-1973), autor de importante obra na área de teologia, filosofia e política, notabilizou-se sobretudo por seu livro De Lamennais a Maritain, citado nesta comunicação.

Inicio minhas considerações buscando a origem da idéia de humanismo. Como se sabe, humanismo é um vocábulo ambíguo, podendo significar coisas diferentes: estudo da cultura clássica em oposição ao estudo teológico; pode significar também conhecimento enciclopédico. Evidentemente o sentido de humanismo que nos interessa é o humanismo como expressão da máxima valorização do homem. Seu sinônimo, talvez com uma conotação pejorativa, é humanitarismo, filantropia, e seu derivado ou sucedâneo pragmatismo.

Ora, o humanismo nesta última acepção levanta sérias questões para o pensador católico.

Vários autores concordam em afirmar que Protágoras é o pai do humanismo com sua famosa sentença “o homem é a medida de todas as coisas, que são e das que não são.” Qual a conseqüência desta tese de Protágoras senão desembocar no mais escancarado liberalismo? Todas as realizações culturais do homem são válidas, genuínas. Tudo depende da vontade do homem. Recorda Leopoldo Palácios que esse humanismo da antigüidade encontrou forte oposição da parte de Platão e Aristóteles, que não foram nada humanistas, pois reconheciam que o conhecimento superior consistia na contemplação das coisas divinas, que são “coisas melhores que o homem.”

Leopoldo Eulogio Palácios, em sua obra El mito de la nueva cristiandad, situa a origem do humanismo maritainiano como herdeiro do liberalismo católico e conclui que tal doutrina busca uma síntese entre o humano e o divino negando-se a reconhecer que o humano é instrumento do divino.

Segundo Palácios, para Maritain, a Idade Média teve uma vantagem que foi o teocentrismo e um inconveniente, a falta de humanismo; a Idade Moderna tem uma vantagem, o humanismo, e um inconveniente, o antropocentrismo. De maneira que a missão do católico na modernidade, na visão de Maritain, seria construir uma nova cristandade obtendo uma síntese vantajosa de teocentrismo e humanismo, na qual não haveria nenhum inconveniente.

Assim, torna-se necessário buscar uma aliança da Igreja com o mundo moderno, tarefa realmente espúria se se considera a Sagrada Escritura, o magistério tradicional da Igreja e o ensinamento dos padres da Igreja.

Com efeito, diz a Epístola de São Tiago amicitia huius mundi inimica est Dei. Quicumque ergo voluerit amicus esse saeculi huius, inimicus Dei constituitur. (Iac. 4, 4). Ademais, condena o magistério da Igreja a seguinte proposição: “A Igreja pode e deve reconciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna” (Sillabus, 1864). E Santo Agostinho, em seu comentário ao Salmo 64, diz: “Dois amores construíram duas cidade, Jerusalém e Babilônia. O amor de Deus construiu a cidade de Jerusalém; o amor do mundo construiu a cidade de Babilônia. Pergunte-se cada um a si mesmo que coisa ama, e verá a que cidade pertence.”

Em sua obra Palácios mostra com clareza justamente isto: o humanismo cristão se coloca entre as duas cidades: quer um amor de Deus que não leve ao desprezo de si mesmo, mas que alente o amor próprio da pessoa e sua sede de liberdade de expansão; e quer um amor centrado no homem mesmo que não conduza ao desprezo de Deus. Esta posição instável, que não quer aceitar a alternativa das duas cidades, mas quer ficar com ambas, recorda um pouco a atitude de um adulto que renunciasse seriamente a casar-se e a ser solteiro. O humanismo cristão nasce de um paradoxo, conclui Palácios (o.c. p. 22,23).

Muito ilustrativo desse espírito é o discurso de encerramento do concílio pastoral Vaticano II proferido por Paulo VI, que diz assim:

“Todas as riquezas doutrinais do concílio visam a apenas isto: servir o homem. A religião do Deus que se fez homem encontrou-se com a religião do homem que se fez Deus. Que houve? Um choque, uma luta, um anátema? Isto poderia ter ocorrido, mas não ocorreu.”

Por outro lado, o humanismo maritainiano que projeta uma nova cristandade parte de uma reflexão sobre a filosofia da história e da cultura. Para Maritain, a obediência do homem medieval ao Evangelho é irrefletida, simples, inadvertida; a resposta à vocação de Deus é ingênua, sem maturidade, e isto é uma desvantagem. Ao contrário, na modernidade, ao lado da desvantagem da desobediência ao Evangelho, há muitas vantagens como, por exemplo, o fato de o homem ter aprendido a conhecer-se a si mesmo, ter adquirido consciência da própria dignidade, e isto lhe dá uma auto-suficiência, uma autonomia. Esta autonomia profana, natural, que não havia na Idade Média, toda ela sacral e voltada para o transcendente, segundo Maritain, é algo positivo. É a isto que ele denomina humanismo.

Quer dizer, os anos de humanismo da modernidade tiveram o condão de trazer conquistas e profundas transformações da civilização, de tal maneira que a resposta do homem a Deus tem de ser diferente, incorporando os elementos da modernidade. De onde, o Sr. Maritain pretender formular um novo conceito de cristandade.

Glosando as páginas de Maritain, diz Leopoldo Palácios: “No terreno da civilização as características da nova cristandade se manifestarão no ideal de implantar uma democracia cristã, a qual revestiria a forma de um Estado laico cristão, realizador de uma concepção profana cristã do temporal. Esta cidade seria, como seu nome indica, um maravilhoso compêndio de todas as prendas que constituem o tesouro do laicismo e da religião, ou para representá-lo graficamente, um barrete frígio completado por uma cruz. Em suma, a nova cristandade terá as vantagens das outras idades sem sofrer seus defeitos. Será plenamente suficiente.” (cf. o. c. p.39-40).

Aqui, efetivamente, estamos diante de uma utopia, de uma visão milenarista da história. As utopias não são inócuas; elas conduzem à revolução. O humanismo maritainiano foi o material inflamável que incendiou os últimos estados confessionais católicos dos resquícios de cristandade. Quantos estados, na Europa e na América Latina, não tiveram suas concordadas revogadas ou reformadas segundo os princípios da ideologia do Sr. Maritain? É preciso indagar quais as conseqüências práticas de tudo isto senão o avanço do neo-paganismo sobre toda a sociedade. A própria tentativa de inserir uma simples referência às raízes cristãs na Constituição da União Européia, uma iniciativa, longe de ser reacionária, ultramontana, restauradora da ordem cristã, mas bem modesta, ao sabor do humanismo maritainiano, foi um fiasco. Não será isso uma prova de que estamos no caminho errado? É esse humanismo que está bestializando o homem.

Observa Palácios que, na verdade, “todo humanismo é inumano, que todo humanismo é antropocêntrico e ateu; que somente submetendo-se o homem à Divindade, reconhecendo seu nada sob o abismo da imensidade divina, é como pode recuperar a sua dignidade. Não é pensando em reabilitar a criatura humana que se pode ir ao Criador, porque então Deus se converte em simples meio de dignificar o homem. É por Deus mesmo que devemos ir a Deus. E em sua luz ver sua luz.” (o.c. p. 59)

Disto infere Palácios que o desejo de chamar humanismo a exaltação da natureza que nos obtém a graça nasce de ignorar como se deve fazer a imposição dos nomes às coisas: res denominantur a potiori. Ora, no cristianismo o mais importante é Deus. Deus se fez homem para que o homem, de alguma forma, se fizesse Deus. Logo, o certo seria falar em divinismo , não em humanismo.

A propósito, vale a pena citar um pensamento de Montaigne: “O homem se elevará quando Deus extraordinariamente lhe estender a mão para isso; elevar-se-á quando abdicar das suas próprias forças e se deixar levar e conduzir somente pelos meios da graça celeste. Só com base em nossa fé cristã e não na virtude estóica podemos esperar essa divina e maravilhosa transformação.”

Outro aspecto da obra de Maritain analisado por Palácios é a sua concepção personalista fundada na distinção entre indivíduo e pessoa, a qual tem graves repercussões no âmbito da filosofia política. Limito-me a sublinhar alguns pontos.

Como se sabe, em Três Reformadores e em A pessoa e o bem comum Maritain diz que a individualidade é o polo material do homem, o que há em comum entre o homem e a besta, e que a personalidade, ao contrário, é o polo espiritual do homem, que o distingue dos irracionais. A personalidade outorga ao homem, diante de todo o universo, uma totalidade subsistente e independente, de maneira que não entra como parte a formar corpo na engrenagem do determinismo universal.

Leopoldo Palácios questiona semelhante distinção. Diz que a distinção entre indivíduo e pessoa é estranha a Santo Tomás e está mais próxima do pensamento de kant, o qual, na Crítica da razão prática, distingue o homem como natureza e o homem como pessoa: o homem como natureza, submetido na ordem fenomênica à engrenagem do determinismo universal, e o homem como pessoa, dotado na ordem inteligível de moralidade e liberdade.

Afora esse argumento de autoridade, acrescenta outra razão Palácios dizendo que, se se pode dizer que a singularidade da natureza outorga ao homem a individualidade, não é menos certo dizer que esta individualidade é deficiente e incompleta enquanto não recebe a personalidade, de forma que o indivíduo é realmente indivíduo somente quando é pessoa e, por conseguinte, individualidade e personalidade não diferem no homem.

Sobre essa falsa distinção entre indivíduo e pessoa, que constitui a espinha dorsal da doutrina do Estado laico cristão, se assenta também, a meu ver, a declaração conciliar sobre a liberdade religiosa que contradiz o proposição 79 pelo Syllabus : “Efetivamente, é falso que a liberdade civil de qualquer culto, assim como a plena potestade concedida a todos de manifestar aberta e publicamente quaisquer opiniões e pensamentos, leve mais facilmente á corrupção dos costumes e do espírito dos povos, bem como à propagação da peste do indiferentismo.”

A referida declaração conciliar junta em uma só proposição dois princípios, um verdadeiro, outro falso. O verdadeiro afirma que ninguém pode ser constrangido ao ato de fé; o falso diz que ninguém pode ser impedido de professar em público qualquer religião, resguardada a ordem pública.

Quer dizer, o homem, como pessoa dotada do dom sacrossanto da liberdade, não se ordena como parte ao todo, de maneira que o Estado confessional católico não tem o direito de impedir que um adepto de uma religião falsa propague doutrinas perniciosas que venham a corromper o bem da unidade religiosa da nação. Onde fica o bem comum?

Esse falso princípio do liberalismo católico não encontra guarida no pensamento de Santo Tomás. Com efeito, o Doutor Angélico explica com clareza as relações entre o homem e a sociedade com base em dois princípios: princípio de subsidiaridade e princípio de totalidade. Aqui nos interessa mais o princípio de totalidade, para compreender o erro do humanismo e da liberdade de cultos.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que, para Santo Tomás, não há distinção real entre indivíduo e pessoa (cf. q. 29, Prima Pars). Para Santo Tomás, o homem não só como indivíduo, mas também como pessoa, se subordina como parte ao todo: Quaelibet autem persona singularis comparatur ad totam communitatem. Ou ainda, na Ia. IIae. q. 21, a.4 : Homo non ordinatur ad communitatem politicam secundum se totum et secundum omnia sua.

Aqui temos uma formulação tomista dos princípios de totalidade e subsidiariedade, explanados nos séculos XIX XX em vários documentos da doutrina social da Igreja. O homem se ordena à sociedade, mas não inteiramente; goza de certa autonomia e liberdade que cumpre ao Estado respeitar. Santo Tomás atribui tão grande importância ao princípio de totalidade, que em sua demonstração da ilicitude do suicídio dele se vale, dizendo que o homem não pode dispor da própria vida porque é uma parte ordenada ao todo, o corpo social. Poderíamos questionar se o surto de suicídio na sociedade moderna não é conseqüência de um obscurecimento do princípio de totalidade, acarretado pela ideologia personalista do sr. Maritain. Vale a pena lembrar que um personagem da novela de Dostoievsky Os demônios faz uma apologia do suicídio como um ato revolucionário. Com efeito, o espírito revolucionário não pode admitir o princípio de totalidade, que, em última análise, deriva da realidade da criação divina. Consciente da criação, o homem descobre seu lugar. Negado o princípio de totalidade, torna-se impossível, por exemplo, recusar a legitimidade da união civil homossexual, considerada em nossos como umas das conquistas da cultura da liberdade, um dos direitos e garantias individuais consagrados na pos-modernidade.

Por isso, em decorrência do princípio de totalidade, a Igreja, sempre vendo a liberdade dos cultos como um mal, admitiu, entretanto, o princípio da tolerância religiosa, ou seja, a prática dos falsos cultos em foro privado. (Cf. Institutiones Iuris Publici Ecclesiastici, Alaphridus, Cardinalis Ottaviani)

Ao contrário, o Sr. Maritain e os católicos liberais se abeberam nas fontes kantianas da moral formal. Para Santo Tomás, existe uma autonomia, assegurada pelo princípio de subsidiaridade. O que Maritain e os católicos liberais advogam é, na verdade, uma soberania intangível do homem. Nesta perspectiva, é ridículo falar em direito público eclesiástico, porquanto o direito se reduz a simples técnica de conciliar os arbítrios segundo o princípio geral da liberdade.

Na tradição católica, o direito e a política sempre foram vistos como um prolongamento da ordem moral. Assim, se o indivíduo deve ordenar todos os seus atos com vista ao fim último, assim também a sociedade e o estado devem organizar-se não apenas em vista da satisfação das necessidades materiais mas também em vista do fim ultraterreno do homem. Essa doutrina está clara em Santo Agostinho, por exemplo. Diz ele na Cidade de Deus que “em sua viagem a cidade celeste supedita a paz terra à paz celeste, verdadeira paz, única digna de ser e de dizer-se paz da criatura racional.”(Cidade de Deus, Livro XIX, Cap. XVII). Igualmente, em outras passagens da Cidade de Deus, Santo Agostinho desenvolve a doutrina de uma espiritualização do poder temporal, vendo no Estado um meio para a realização da lei eterna. Diz ainda: “Onde não há verdadeira justiça não pode existir verdadeiro direito. Como o que se faz com o direito se faz justamente, é impossível que se faça com direito o que se faz injustamente. (....) Que justiça é essa que do verdadeiro Deus afasta o homem e o submete aos imundos demônios?” (o.c. livro XIX, c. XXI).

Vê-se, pois, que a declaração Dignitatis Humanae , eivada de personalismo, contradiz a doutrina de Santo Agostinho ao afirmar que se faz com direito a propagação de falsas religiões, contanto que respeitada a ordem pública. Que ordem pública é essa perguntaria Santo Agostinho. Se não se subordina ao fim último não é verdadeira ordem pública, não é verdadeira paz.

Quanto à crítica do Padre Meinvielle à doutrina da nova cristandade de Maritain, gostaria de citar apenas um trecho de seu precioso livro De Lamennais a Maritain que complementa bem a idéia que desenvolvo apoiado em Leopoldo Palácios e Santo Agostinho. Diz Pe. Meinvielle:

“Uma ordem de vida individual e social que não esteja orientada para o fim sobrenatural a que o homem está ordenado, é má e contrária à positiva vontade do Criador. A filosofia apenas, não só não salva, mas perde o homem. A natureza humana e a razão humana não só não salvam mas perdem o homem. A sociedade política, ainda que estruturada perfeitamente em sua condição natural, não só não salva mas perde o homem. Para que o salve deve, sem confusão, unir-se intrinsecamente à sociedade sobrenatural que é a Igreja. Porque de sua união com a Igreja, o Estado, mantendo-se em sua órbita própria, que é a de legislação da vida social humana, a dirige como meio eficaz, ainda que indireto, à perfeição do homem. Mas se o Estado se laiciza, isto é, se se afasta da Igreja ou debilita a união com ela, qualquer Estado – seja democrático ou totalitário -, não pode em absoluto cumprir com sua missão que é encaminhar os homens à sua perfeição, mas, pelo contrário, será instrumento de corrupção. É o que acontece em todo Estado liberal, com um liberalismo radical, Rousseau-Marx, que nega toda dependência do homem, tanto diante de Deus como diante de outro homem, ou com um liberalismo moderado, Lamennais-Maritain, que, ainda que submeta o homem a Deus não o submete ao Estado, nem submete o Estado à Igreja.

Em tal condição, a vida social humana fica subtraída à influência sobrenatural, e como os indivíduos não podem evitar que esta vida social influa sobre eles, neste caso não poderão evitar que influa sobre eles, naturalizando-os, isto é, desordenando-os, ao dirigi-los a um fim que não é o concreto proposto pelo Criador aos homens. Primeiro erro gravíssimo da nova cristandade de Maritain: Exclusão da Igreja da vida social humana.” (o. c. p. 366-367).

Em conclusão, desejaria dizer que, se tiramos as conseqüências da verdade metafísica de que somos ens ab alio em todo o seu alcance, seja no que respeita à nossa vida espiritual seja no que concerne à ordem política, fica difícil sustentar a legitimidade de um humanismo cristão, sobretudo se relacionarmos esse princípio metafísico com os ensinamentos da Sagrada Escritura, que nos mostram o fundamento da verdadeira dignidade humana e sua total dependência do Criador: Minuisti eum paulo minus ab angelis, gloria et honore coronasti eum. Et constituisti eum super opera manuum tuarum. (Ps. 8, 6-7) Nisi Dominus aedificaverit domum, in vanum laboraverunt qui aedificant eam. (Ps. 126, 1) Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam (Ps. 113,8 ).

Nestes últimos anos, sob o influxo do humanismo integral do sr. Maritain, substituiu-se o Decálogo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou bem restabelecemos o Decálogo em seu devido lugar, ou bem o escândalo da pedofilia será apenas mais um capítulo da longa tragédia do humanismo dito cristão.

Fonte: Associação Civil Santa Maria das Vitórias

sábado, 22 de agosto de 2009

A encíclica Caritas in Veritate de Bento XVI: continuação ou ruptura?

Dici.org

Tradução FSSPX/Brasil

Caritas in Veritate

Assinada pela mão de Bento XVI em 29 de junho de 2009, a encíclica Caritas in veritate foi publicada em 7 de julho. À primeira leitura, o documento romano dá a impressão que Jean-Marie Guénois traduz em Le Figaro: “Notável em muitas passagens, (este texto) é pouco acessível em seu conjunto. Querendo tratar sem dúvida de demasiados assuntos, ele se dispersa, e o fio condutor ‘o amor na verdade’ deixa de ser evidente. É o preço, diz-se, dos textos de muitos redatores. (…) O risco é que a forma deste texto prejudique seu impacto.”  Os vaticanistas se esforçaram por identificar as diferentes personalidades consultadas pelo papa para escrever esta encíclica social de mais de 150 páginas. Foram citados economistas como Stefano Zamagni ou especialistas em finanças como o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi, editorialista do Osservatore Romano para assuntos econômicos e financeiros, bem como o especialista em doutrina social M. Reinhard Marx, o segundo sucessor de M. Ratzinger no arcebispado de Munique. Apesar de tudo, este documento traz bem a marca de Bento XVI, que nele oferece um exercício prático de “hermenêutica da continuidade”, tal como a definiu no princípio de seu pontificado, diante da cúria romana, em dezembro de 2005.

É o que ele mesmo escreve no capítulo I de Caritas in veritate, onde se situa claramente em continuidade com a mensagem da encíclica de Paulo VI Populorum progressio (1967), afirmando que também suas duas encíclicas se inscrevem na linha constante do ensinamento da Igreja: “O laço que existe entre a Populorum progressio e o Concílio Vaticano II não representa um corte entre o magistério social de Paulo VI e o dos papas que o precederam, sendo dado que o Concílio é um aprofundamento desse magistério na continuidade da vida da Igreja. (…) Não há duas tipologias de doutrina social, uma pré-conciliar e outra pós-conciliar, mas um ensinamento único, coerente e ao mesmo tempo novo. É justo assinalar as características próprias de cada encíclica, do ensinamento de cada Pontífice, mas sem perder nunca de vista a coerência do conjunto do corpus doutrinal. Coerência não significa fechamento, mas antes fidelidade dinâmica a uma luz recebida. A doutrina social da Igreja ilumina com uma luz que não muda os problemas sempre novos que surgem. Isso preserva o caráter ao mesmo tempo permanente e histórico deste patrimônio doutrinal que, com suas características específicas, pertence à Tradição sempre viva da Igreja” (n°12). – Rejeição de um corte entre pré e pós-conciliar, busca de uma fidelidade que não seja fechada, mas dinâmica, afirmação de uma Tradição sempre viva, tais são os temas desde sempre familiares do pontificado atual.

Duas perguntas se impõem: 1. A encíclica de Paulo VI Populorum progressio não introduziu realmente nenhuma ruptura com o ensinamento anterior ao Vaticano II? 2. E, se há ruptura, como a Caritas in veritate pode remediá-lo?

1. A Populorum progressio analisada por Romano Amerio

Em sua obra Iota unum, étude sur les variations de l’Eglise catholique au XXe siècle (Nouvelles Editions Latines, 1987), Romano Amerio analisa a encíclica de Paulo VI nestes termos: “A Igreja se encarregou, no Vaticano II, de tomar parte diretamente no aperfeiçoamento temporal, tentando assim fazer o progresso dos povos voltar à finalidade do Evangelho. A encíclica Populorum progressio explicita a doutrina [nova.; N. do A.].” O filósofo italiano denuncia então “a mudança de perspectiva que inverte a teleologia fazendo do progresso técnico e utilitário se não o fim, ao menos a condição prévia da perfeição espiritual e da ação da Igreja. […] É verdade que o termo para o qual se dirige o desenvolvimento é ‘um crescimento integral’ e um humanismo destinado a integrar-se em Cristo, tornando-se assim um humanismo transcendental. Mas a relação entre o todo que é o homem humanamente desenvolvido e o outro todo que é o homem sobrenaturalizado fica indeterminado” (pp. 601-602). – Em outras palavras, o desenvolvimento humano integral vê de modo indeterminado, ou seja, vago ou confuso, a relação entre a natureza e a graça. O que suscita outra pergunta: a encíclica Caritas in veritate, que quer tratar precisamente desse “desenvolvimento humano integral”, escapa da influência que a obra Humanismo Integral, de Jacques Maritain, que se tornou personalista, exerceu sobre Paulo VI? Uma frase, no n° 42, dá a resposta: “A verdade da globalização como processo e sua natureza ética fundamental derivam da unidade da família humana e seu desenvolvimento no bem. É preciso pois trabalhar sem cessar com a finalidade de favorecer uma orientação cultural personalista e coletiva, aberta à transcendência, do processo de integração planetária.”

Voltemos a Romano Amerio, que chama de catolicismo secundário” a tendência antropocêntrica manifestada no Concílio Vaticano II, em particular na Gaudium et Spes (n° 12 e n° 24). Ele o explica: “A religião tem por efeito certamente a civilização, e a história da Igreja o demonstra, mas não tem por fim nem por efeito primeiro a civilização no sentido de aperfeiçoamento terrestre. O estado presente da civilização [moderna; N. do A.] é de independência e ‘asseidade’: o mundo rejeita toda dependência que não seja de si mesmo. A Igreja parece temer ser rejeitada, como o é positivamente por grande parte do gênero humano. Então ela procura descolorir suas próprias particularidades meritórias e colorir, em contrapartida, os traços que tem em comum com o mundo: todas as causas jurídicas sustentadas pelo mundo têm o apoio da Igreja. Ela oferece ao mundo seus serviços e procura pôr-se à frente do progresso humano. Dei a esta tendência o nome de cristianismo secundário” (p. 415).

E Amerio expõe a crítica teológica desse “cristianismo secundário”: “O pecado específico do cristianismo secundário, que vicia a cidade do homem, é a caducidade do transcendente. Ela coincide com o pecado que Santo Agostinho chama de inadvertência e Santo Tomás de inconsideração, no qual eles fazem consistir o pecado dos anjos. É que a inadvertência do fim celeste último perturba de alto a baixo a religião e inverte a perspectiva: ‘ Temos aqui a nossa cidade permanente e não buscamos outra para o futuro’ (ao contrário de Hebr., XIII, 14). Donde a perspectiva final puramente terrestre, redução do cristianismo para servir de meio, apoteose da civilização [moderna; N. do A.]” (pp. 416-417).

Caritas in veritate quer opor-se a essa “inadvertência do fim último celeste”, em particular em sua introdução: “No contexto sociocultural atual, em que a tendência a relativizar a verdade é corrente, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento não só útil, mas indispensável para a edificação de uma sociedade boa e de verdadeiro desenvolvimento humano e integral” (n° 4). O mesmo em sua conclusão: “O fechamento ideológico com respeito a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos, apresentam-se hoje entre os maiores obstáculos para o desenvolvimento” (n° 77.) Mas não podemos evitar ver que essa denúncia do ateísmo, da indiferença e do relativismo contemporâneos é contrariada e enfraquecida pela vontade de afirmar uma continuidade com o ensinamento conciliar, cujo espírito fundamental Amerio tão bem conseguiu desentranhar de sua formulação equívoca.

Caritas in veritate sobre a questão da liberdade religiosa

Consegue Bento XVI em Caritas in veritate anular a oposição entre pré e pós-conciliar? Tomemos apenas um exemplo particularmente significativo, e que estará entre os temas estudados nas próximas discussões doutrinais entre o Vaticano e a Fraternidade São Pio X: a liberdade religiosa.

A propósito da liberdade religiosa escreve Bento XVI: “Se é verdade, por um lado, que o desenvolvimento necessita das religiões e das culturas dos diferentes povos, não é menos verdadeiro, por outro lado, que é necessário operar um discernimento apropriado. Liberdade religiosa não quer dizer indiferença religiosa e não implica que todas as religiões sejam equivalentes. Um discernimento concernente à contribuição que podem dar as culturas e as religiões com a finalidade de edificar a comunidade social no respeito ao bem comum revela-se necessário, em particular por parte dos que exercem o poder político. Tal discernimento deverá basear-se no critério da caridade e da verdade. E, porque está em jogo o desenvolvimento das pessoas e dos povos, deverá levar em conta a possibilidade de emancipação e de integração na perspectiva de uma comunidade humana verdadeiramente universal. ‘O homem todo e todos os homens’ é um critério que permite avaliar também as culturas e as religiões. O Cristianismo, religião do Deus que possui face humana, traz em si tal critério” (n° 55).

Mas, um pouco mais acima, o papa não exclui as outras religiões que cumprem, elas também, a seu modo de ver, esses critérios: “Outras culturas e outras religiões também ensinam a fraternidade e a paz, e têm pois grande importância para o desenvolvimento humano integral” (ibid.). Portanto, se a Igreja, única Arca da Salvação, é posta no mesmo nível das outras religiões, como se deveria compreender a Introdução da encíclica, onde se escreve: “a adesão aos valores do cristianismo é um elemento não somente útil mas indispensável para a edificação de uma sociedade boa e de um verdadeiro desenvolvimento humano integral”? O cristianismo é indispensável, mas não exclusivo? Outras religiões (quais? a encíclica não o diz) podem contribuir para o desenvolvimento humano integral, ou seja, aberto à transcendência, mas essa transcendência se identifica com a salvação eterna? Não confunde ela, como sublinhava Amerio, o plano natural e o plano sobrenatural?

No parágrafo seguinte, o papa afirma: “A religião cristã e as outras religiões só podem dar sua contribuição para o desenvolvimento se Deus também tiver seu lugar na esfera pública, e isso concerne às dimensões culturais, sociais, econômicas e especialmente políticas. A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este ‘direito de cidade’ da religião cristã. A negação do direito de professar publicamente sua religião e de procurar que as verdades da fé inspirem também a vida pública tem conseqüências negativas sobre o desenvolvimento verdadeiro. Tanto a exclusão da religião do âmbito público como, por outro lado, o fundamentalismo religioso impedem o encontro entre as pessoas e sua colaboração para progresso da humanidade. A vida pública se empobrece, e a política se torna opressiva e agressiva. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados seja porque são privados de seu fundamento transcendente, seja porque a liberdade pessoal não é reconhecida” (n° 56).

Apesar dessa pretensão do “direito de cidade”, estão ausentes da encíclica o reinado social de Jesus Cristo e as instituições cristãs. O papa denuncia bem um ateísmo prático do Estado, mas não vê na raiz desse ateísmo prático a laicidade do Estado: “Quando o Estado promove, ensina ou mesmo impõe formas de ateísmo prático, subtrai de seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se comprometerem com o desenvolvimento humano integral, e os impede de avançar com um dinamismo renovado em seu compromisso por dar uma resposta humana mais generosa ao amor de Deus” (n° 29). Nisso Bento XVI não se afasta do que o cardeal José Ratzinger declarava a Peter Seewald em Le Sel de la Terre (Flammarion/Ciervo, 1997): “Creio que o desenvolvimento da modernidade implica um lado negativo, a volta da subjetividade; mas o elemento positivo é a oportunidade de haver uma Igreja livre num Estado livre, se podemos expressar-nos assim. Aí residem as oportunidades de uma fé mais viva, porque mais profunda e mais livremente fundada. Ela certamente deve defender-se da volta do subjetivo e seguir tentando fazer-se ouvir pela opinião pública” (p. 231).

Em outra parte, o papa constata o fato da globalização, mas não parece querer ver neste fato um efeito de uma ideologia: o globalismo, ideologia estranha e até hostil ao catolicismo. “Na nossa época, o Estado se encontra na situação de ter de fazer frente aos limites que suscita à sua soberania o novo contexto comercial e financeiro internacional, caracterizado por uma mobilidade crescente dos capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contexto modificou o poder político dos Estados. Hoje em dia, quando muitas lições são dadas pela atual crise econômica, na qual os poderes públicos do Estado se vêem diretamente envolvidos na correção dos erros e disfunções, uma nova avaliação de seu papel e de seu poder parece mais realista; estes devem ser sabiamente reconsiderados e repensados para estar em condições, por meio até de novas modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo contemporâneo” (n° 24) — Os Estados não têm senão de corrigir “os erros e as disfunções”, frutos da globalização, sem buscar combater, contra a corrente, a ideologia globalista? Em Caritas in veritate, nenhuma ideologia é designada por seu nome, nem o liberalismo, nem o socialismo, nem o globalismo. Os efeitos são denunciados, mas as causas não são nomeadas. Não se pode afirmar claramente o que enunciava Romano Amerio: “O atual estado da civilização é de independência e ‘asseidade’: o mundo rejeita toda dependência salvo de si mesmo”? Os remédios por tomar proviriam, assim, um pouco menos da medicina sintomática, que só se ocupa dos efeitos; iriam à causa do mal.

O comprometimento é evidente com respeito ao governo mundial. No capítulo V, intitulado “A colaboração da família humana”, Bento XVI se mostra muito crítico com relação à eficácia real dos organismos internacionais. Ele lança novamente o apelo de seu antecessor João XXIII na encíclica Pacem in terris (1963) pelo surgimento de uma “verdadeira Autoridade política mundial”: “É urgente que se estabeleça uma verdadeira Autoridade mundial tal como já esboçada por meu antecessor, o bem-aventurado João XXIII” (n° 67). Nesta encíclica, o papa que convocou o Concílio Vaticano II considerava que os problemas de dimensões mundiais “não [podem] ser solucionados senão por uma autoridade pública cujo poder, constituição e meios de ação também assumam dimensões mundiais”.

E Bento XVI não hesita em desenhar o retrato desta nova entidade mundial: “Tal Autoridade deverá ser regulada pelo direito, conformar-se de maneira coerente aos princípios de subsidiariedade e solidariedade, ordenar-se à realização do bem comum, comprometer-se com a promoção de um autêntico desenvolvimento humano integral que se inspire nos valores do amor e da verdade.” Deverá, por outro lado, ser reconhecida por todos, gozar de poder efetivo para garantir a cada um a segurança, o respeito da justiça e dos direitos, e “obviamente possuir a faculdade de fazer as diferentes partes respeitar suas decisões, bem como as medidas coordenadas adotadas pelos distintos fóruns internacionais” (ibid.).

O papa preconiza ali os meios concretos e eficazes para o “desenvolvimento humano integral”? Essa autoridade mundial considerará o cristianismo “um elemento indispensável para a edificação de uma sociedade boa e de um verdadeiro desenvolvimento humano integral”? Não continuará ela fundamentalmente independente de toda religião, ou seja, laica, não se inspirando senão nos “valores do amor e da verdade” em sentido laico?

Os comentários dos prelados romanos que apresentaram a encíclica à imprensa em 7 de julho são particularmente reveladores. Interrogado sobre a questão da “urgência da reforma da Organização das Nações Unidas” que Bento XVI demanda, M. Giampaolo Crepaldi, secretário do Conselho Pontifício Justiça e Paz, afirmou que, desde a Pacem in terris de João XXIII, “a configuração dos problemas mudou”, constatando uma “inadequação reconhecida pelas próprias Nações Unidas”. Ele sublinhou a necessidade “de melhor adaptar as instituições internacionais em face do aparecimento de problemas e de sua complexidade”. No entanto, aos olhos de M. Crepaldi, “no plano técnico, é impensável pedir à Santa Sé uma proposta orgânica e técnica, ou seja […], uma formulação no plano jurídico e político da reforma das Nações Unidas”.

Caritas in veritate não demanda um “supergoverno, um governo mundial”, afirmou por seu lado o cardeal Renato Raffaele Martino, Presidente do Conselho Justiça e Paz. No entanto, as organizações atuais deveriam ter esta autoridade política mundial: “Por esta razão o papa demanda a reforma das Nações Unidas.” “A Santa Sé, tal como o papa, demanda esta reforma das Nações Unidas, mas não diz o que é preciso fazer, como a reforma deve ser implementada”, insistiu. “Quando a Caritas in veritate fala de uma autoridade para o governo da globalização, demanda uma nova governance [em inglês] e não um novo governo mundial”, indicou por seu lado Stefano Zamagni, membro do Conselho Pontifício Justiça e Paz. — Então, “um autêntico desenvolvimento humano integral” seria promovido por uma nova governança mundial? Apesar do retrato ideal que traça o papa, gostaríamos de ter precisões sobre a influência real dessa governança.

A encíclica convida a uma “fidelidade dinâmica”, a uma “nova síntese humanista”, “a uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração planetário”. Essa busca permanente de um novo equilíbrio, sempre por vir, mostra que a conciliação entre o magistério pré-conciliar e o ensinamento pós-conciliar não é evidente. “A doutrina social da Igreja ilumina com uma luz que não muda os problemas sempre novos que surgem”, declara a encíclica. A iluminação é aqui muito fraca; a luz da Tradição não pode ser filtrada.

Do editorial de Dici.org

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