quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Deus castiga?

 

Aquele que ama a correção, ama a ciência,

mas o que detesta a reprimenda é um insensato (Prov. 12, 1)

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

     Uma das tolices mais irritantes que se ouvem hoje em diversos ambientes pentecostais e progressistas é que Deus não castiga porque Deus é amor. Que coisa mais bonita! Que coisa mais melosa! Que coisa mais cretina!

     Outra coisa ridícula e estulta que se ouve com freqüência, vinda dos arraiais progressistas, é que o Deus do Antigo Testamento é um Deus diferente do Novo Testamento.

     O mistério de Deus excede a razão humana, mas não a contradiz. Quando crê em Deus, o homem não descarta o uso da razão; pelo contrário, esta lhe diz que é razoável crer, que há motivos para crer. A fé é uma luz que aperfeiçoa a razão. Ademais, seja dito de passagem, a existência de Deus não é artigo de fé, mas dado da razão. Se alguém não alcança a Deus pela razão, nada impede que nele creia movido pela graça e tocado ao menos por argumentos de conveniência.

     Basta usar um pouco a inteligência para concluir que não tem cabimento afirmar a existência de Deus criador do homem livre e racional, dotado de alma espiritual e imortal e, ao mesmo tempo, dizer que Deus não pune ninguém.

     Como ensina a Dogmática, o conhecimento que temos de Deus é um conhecimento analógico. Quer dizer, por comparação com as obras criadas, podemos conhecer a Deus e seus atributos, não em sua forma própria, mas de forma estranha, tal como moldada nas criaturas. (Cf. BARTMANN, Teologia Dogmática, v. p. 146, São Paulo, 1962). Isto nos permite evitar tanto o erro do antropomorfismo quanto uma total desantropomorfização incompatível com o dado da revelação e o mistério da Encarnação do Verbo.

     Pois bem, se Deus é pai e todo pai bom e educador castiga e corrige seus filhos para o seu bem, como não castigará Deus o homem, seu filho, para seu bem e salvação? A Sagrada Escritura contém várias passagens com essa doutrina. Por exemplo, o Apóstolo São Paulo, citando Provérbios, diz na Epístola aos Hebreus: “Filho meu, não desprezes a correção do Senhor. Não desanimes, quando repreendido por ele; pois o Senhor corrige a quem ama e castiga todo aquele que reconhece por seu filho (Prov. 3, 11s.).”

      Por outro lado, cumpre lembrar o que diz Santo Tomás em seu comentário à Epístola de São Paulo aos Romanos. Explicando as maldições que há na Sagrada Escritura, diz o Angélico que se devem julgar as coisas não segundo a sua matéria mas segundo sua forma (Cf. Super Epistolas, Ad Romanos, c. XII, lectio III). De modo que se pode dizer que o mal, enquanto castigo, não tem razão de mal mas de bem.

     Do esquecimento dessa verdade decorre hoje uma nova religiosidade que quer um cristianismo sem cruz, sem sofrimento. É por isso que se vê tanto abuso na pratica das chamadas missas de “cura e libertação”. Já não se aceita o sofrimento como uma prova permitida ou querida por Deus, mas sempre como um mal vindo do diabo.

     Hoje há uma verdadeira heresia em torno da revelação cristã de que Deus é amor. O amor pressupõe a inteligência que ilumina a vontade com o bem a ser amado. Deus ama porque antes é razão. Deus cria livremente, porque antes é inteligente. Ama tudo aquilo que criou com medida, número e peso (Sab. 11, 21). Sua obra, antes de ser reflexo da sua bondade, é reflexo da sua inteligência. Na mente divina existe, desde toda eternidade, o projeto da criação, que tem início no tempo, como manifestação da sua bondade e onipotência. E seu amor – também nos ensina a teologia dogmática – não é expressão da sua vontade mas do seu ser.

     A criação divina constitui uma ordem. Essa ordem expressa, sobretudo, inteligência e sabedoria. Opondo-se a todo bom senso, a filosofia voluntarista nega a inteligência anterior à vontade em Deus, o que tem conseqüências desastrosas em vários campos.

     Na perspectiva voluntarista, como todas as coisas dependem exclusivamente da vontade divina sem nexo com a sua inteligência, não só as ações humanas tendem a ser arbitrárias, mas também a própria idéia que se faz do juízo divino é uma idéia ilusória, reduzindo-se a um juízo destituído de qualquer elemento racional. Deus poderia fazer um Decálogo ao contrário e seria bom, porque procedente da sua vontade. Ora amor sem razão é um absurdo.

     Os frutos amargos de todas essas distorções teológicas são perceptíveis. Um deles, parece-me, é a decadência da atual educação. A educação – ou deseducação – que se dá hoje às crianças e aos jovens, é uma satisfação de caprichos da vontade ou vaidade dos pais e dos filhos. Não visa mais à perfeição e aquisição das virtudes conforme o conhecimento da verdade.

     O deus caprichoso, que muda de feição do Antigo para o Novo Testamento, da dureza para a moleza, de acordo com a nova exegese pentecostal,inspira o relaxamento da nova educação.

      Não é em vão que a Igreja tradicionalmente procurou guiar e mediar a leitura da Sagrada Escritura para evitar erros e subjetivismos na sua interpretação. Não são dois deuses opostos o do Antigo e do Novo Testamento. Mas o mesmo Deus, eterno e imutável que no tempo age como um pai ou pedagogo, adaptando-se às condições dos seus filhos. Nosso Senhor não veio abolir a lei mas completá-la e aperfeiçoá-la, o que significa torná-la ainda mais rigorosa: “Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher já adulterou com ela em seu coração” (Mt. 5, 27-29).

     Como bem observa Santo Agostinho, o Antigo Testamento não ameaça com a pena eterna do inferno, mas o Novo Testamento a comina em várias passagens: “Nosso Senhor Jesus Cristo quis que fosse mais suave a disciplina uma vez revelado o Novo Testamento. Todavia, é mais atroz a ameaça do inferno, a qual não lemos entre as ameaças de Deus no governo daqueles tempos.” (Super Psalmos, Ps. 105). Quando diz que a disciplina do Novo Testamento é mais suave, o santo doutor refere-se ao conteúdo do salmo 105 que recorda os castigos temporais impostos ao povo hebreu por causa da sua rebeldia e murmuração.

     Resumindo essa doutrina em termos teológicos precisos, diz Renié, em seu Manuel d’Ecriture Sainte, : “Sem dúvida, a lei mosaica é inferior à lei evangélica: é que Deus, como um sábio pedagogo, conduziu a humanidade indo do menos perfeito ao mais perfeito. Jesus não ab-rogará a lei de Moisés, transforma-la-á, aperfeiçoa-la-á (Mt. 5,17). Se por si mesma a lei do Sinai não produzia a graça na alma e só conferia uma purificação exterior, ela contribuía no entanto para a justificação e por seus ritos expressivos reavivava a fé no Messias, de quem vinha a salvação verdadeira (...). Quanto à sua excelência, ela resulta da sua própria perenidade, porquanto ela está ainda na base das nossas civilizações modernas.” (Renié, Emmanuel Vitte, Paris, 1941).

     Para remate dessas reflexões, diria apenas que uma das providências urgentes a serem tomadas para impedir dissolução da doutrina sagrada, a redução do catolicismo à religião sem dogmas, a um vago, indefinido (e cretino) sentimento de amor é, sem dúvida, a Igreja voltar a ser mais vigilante sobre a leitura da Sagrada Escritura. Esta tem de ser precedida por criterioso estudo do catecismo, mediada pela tradição, pelo magistério e pela liturgia da Igreja. Tudo isto implica uma série de medidas concretas. A reforma litúrgica, inflacionando a leitura de textos bíblicos nas missas, inclusive com passagens de difícil interpretação, criou uma situação embaraçosa segundo análise do erudito cardeal Stickler. Aguçou um interesse entre os leigos, para não dizer uma curiosidade, pelas Sagradas Escrituras, que envolve perigos graves para a integridade da fé católica. Além disso, há um incontestável despreparo do clero formado após o Vaticano II – prejudicado pela degradação dos estudos na maioria dos seminários – para explicar aos fiéis as passagens da Sagrada Escritura lidas na santa missa. Se por um lado a reforma litúrgica multiplicou o número de leituras bíblicas, por outro lado censurou os chamados salmos imprecatórios, explanados de forma admirável por Santo Agostinho. Como se sabe, referidos salmos em linguagem contundente profetizam terríveis desgraças que cairão sobre o pecador impenitente como se fossem votos. Empregados na liturgia tradicional, seja na missa na forma de intróito ou no breviário como antífona, esses salmos recordam ao cristão a justiça divina. Certamente, não foi inócua sua supressão. Lex orandi, lex credendi. Se uma verdade de fé deixa de ser exposta pela liturgia, com o tempo será negada ou esquecida. Por exemplo, a tradução mutilada do cânon romano, suprimindo a expressão “eterna danação” é uma das causas de hoje não ser negado o inferno. Não é à toa que o cardeal Ratzinger disse que a reforma litúrgica é uma das causas da crise da Igreja em nossos dias.

Anápolis, 28 de outubro de 2008

Festa de São Simão e São Judas Tadeu, Apóstolos

Fonte: Deus castiga-Pe João Batista - Associação Civil Santa Maria das Vitórias

Confira também o artigo: A imortalidade da alma em Sto. Tomás e Dostoievski

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