LIVRO I : DEUS EM SI MESMO
CAPÍTULO I
QUAL É O OFÍCIO DO SÁBIO
Minha boca publicará a verdade e meus lábios odeiam a impiedade (Pr 8,7).
l. A terminologia vulgar, que o Filósofo diz ser conveniente respeitar ao se dar nome às coisas (II Tópicos l, 109a), preferiu em geral julgar como sábios aqueles que diretamente ordenam as coisas e as governam com habilidade. Por isso, entre outras funções que os homens atribuem ao sábio, a de que pertence ao sábio ordenar è proposta pelo Filósofo (l Metafísica 2, 982a; Cmt 2, 42-43). Ora, a regra do governo e da ordenação de todas as coisas que se dirigem para um fim deve ser assumida deste fim. Assim, cada coisa fica otimamente disposta enquanto se ordena convenientemente para o seu fim, visto ser o fim o bem de cada uma. Por esse motivo, vê-se também que, nas artes, tem o governo e como que o principado sobre as outras aquela à qual pertence o fim. Por exemplo; a arte médica governa e ordena a arte farmacêutica porque a saúde, que é ob-jeto da medicina, é o fim de todos os medicamentos preparados na farmácia. Coisa semelhante acontece na arte da navegação com relação a arte da construção naval, bem como na arte militar com relação à arte equestre e a toda indústria bélica. Essas artes que têm o principado sobre as outras são denominadas arquite-lônïcas ou artes principais. Dai os seus artífices — que são chamados arquitetos — reclamarem para si o nome de sábios.
2. Como, porém, os supramencionados artistas que tratam dos fins de coisas singulares não atingem o fim universal de todas as coisas, são, por isso, chamados de sábios desta ou daquela coisa. E é neste sentido que são Paulo escreve: Como sábio arquiteto coloquei o fundamento (l Cot 3, 10).
O nome de sábio, porém, é simplesmente reservado só para quem se dedica à consideração do fim do universo, que é também o princípio. De onde afirmai o Filósofo que pertence ao sábio considerar as altíssimas causas (I Metafísica 1. 981a — 2, 982a; Cmt l e 2, 24-28 e 49).
3. O fim último de cada coisa é intencionado pelo seu primeiro autor ou motor. O primeiro autor e motor do universo é o intelecto, como mais além se verá (cf infra 1. I, c. XLIV; 1. II, c. XXIV). Convém, pois, que o fim último do universo seja o bem do intelecto, que é a verdade. Donde ser a verdade o fim último de todo o universo. Donde, também, convir à sabedoria entregar-se, acima de tudo, à sua consideração.
Justamente para a manifestação da verdade é que a sabedoria divina encarnada veio ao mundo, como bem o afirma são João: Eu aqui nasci e vim ao inundo para dar testemunho da verdade (Jo 18, 37).
Esclarece também o Filósofo que a Filosofia Primeira é a ciência da verdade (II Metafísica l,993b; Cmt 2, 298). Não porém de qualquer verdade, mas daquela verdade que é a origem de toda verdade, isto é, a que pertence ao primeiro princípio do ser e de todas as coisas. Donde também ser a verdade o princípio de toda verdade, já que as coisas estão dispostas na verdade como no ser.
4. Pertence, com efeito, ao que aceita uni dos termos contrários refutar o outro, como, por exemplo, acontece na medicina: esta trata da saúde e afasta a doença. Portanto, como pertence ao sábio considerar principalmente o primeiro princípio e discorrer sobre os outros, pertence-lhe impugnar também o erro contrário.
5. E, pois, mui convenientemente declarado pela boca da Sabedoria o duplo ofício do sábio, no texto supracolocado. Refere-se ele à verdade divina meditada, que por antonomásia é a verdade, quando diz: Minha boca publicará a verdade. Refere-se à impugnação do erro contrário à verdade, quando diz: Os meus lábios odeiam a impiedade. Está aqui designada a falsidade contrária à religião, pois esta também se chama de piedade. Daí a falsidade, que lhe é contrária, assumir para si o nome de impiedade.
Fonte: Suma Contra os Gentios, Santo Tomás de Aquino, Tradução de Dom Odilo Mourão, Edições Est
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