Extraído de Contra-Impugnantes.
Sidney Silveira
Após considerarmos o caráter quimérico, anticlerical e despótico do supermonarca de Dante, que renegara a ordem da graça e as leis da Igreja com o propósito de estabelecer um poder político de cunho humanista, desvinculado de qualquer plano espiritual superior, passemos agora a um autor que, tanto quanto o florentino, pode ser considerado como outro importante precursor do laicismo moderno: Sir Thomas More (ou Morus, na forma latinizada) — homem a quem Deus agraciou com o martírio em defesa da fé, mas cuja obra política prestou um incomensurável desserviço à Igreja que amava.
Com o fito de absolutizar a política e criar um poder mundial sem a mais ínfima sombra de Deus ou de suas leis, Dante propusera a teoria dos dois fins últimos — um natural e outro natural, absolutamente desligados entre si; Morus, por sua vez, proporá uma Pólis em que as questões religiosas sejam discernidas pelas consciências individuais, não havendo nenhuma instância externa que possa decidir com grau de certeza acerca delas. Sem dúvida, é ele uma espécie de tataravô da idéia de liberdade religiosa.
Diz o nosso autor, na sétima e última parte do Livro II de sua Utopia:
“Os utopianos [ou seja: os habitantes da Ilha da Utopia] incluem no número de suas mais antigas leis a que proíbe prejudicar uma pessoa por sua religião. Utopus, na época da fundação de seu império, apurou que, antes de sua chegada, os nativos viviam em guerras contínuas por motivos religiosos. Notara também que tal situação lhe facilitara a conquista do país, porque as seitas dissidentes, em vez de se reunir em massa, combatiam-se entre si. Assim que se viu vitorioso e senhor do país, apressou-se em decretar a liberdade de religião. (...) Utopus, decretando a liberdade religiosa, não tinha unicamente em vista a manutenção da paz outrora perturbada por combates contínuos e ódios implacáveis [perguntamos nós: que paz, se ele já encontrara conflitos ao chegar?]; pensava ainda que o próprio interesse da religião exigia tal medida [hã?]. (...) Previa que, se todas as religiões fossem falsas, à exceção de uma, tempo viria em que, com o auxílio da doçura e da razão [e não da graça divina!!!], a verdade apareceria espontaneamente, luminosa e triunfante, da noite do erro. (...) Foi por isso que Utopus deixou a cada um a inteira liberdade de consciência e de fé. (...) Se bem que os utopianos não professem a mesma religião, entretanto todos os cultos desse país, em suas múltiplas variedades, convergem por diversos caminhos para o mesmo fim, que é a adoração da natureza divina. (...) Cada um celebra em sua casa, em família, os mistérios particulares [????] à sua fé. O culto público é organizado de maneira a não contradizer em nada os cultos domésticos e privados [com isto, o nosso teórico destrói até mesmo o conceito de Igreja]”.
Mas Morus não pára por aí, em sua utopia de libertar a política do “jugo” de uma religião cujo Magistério impunha às consciências uma verdade de ordem superior que não dava margem a nenhum erro — uma verdade que, na prática, não é nenhuma espécie de“descoberta” das consciências individuais, mas a boa nova proclamada pelo próprio Deus a todas as consciências humanas como lei universal (católica) que elas devem aceitar. Uma lei universal fora da qual nem os homens nem as sociedades podem alcançar a verdadeira paz, a pax Christi. Como se disse, Morus não pára por aí: não só a Religião não se intrometerá nas coisas do Estado, mas o inverso, sim, é que ocorrerá: o Estado é que decidirá a respeito das coisas de Deus.
Diz o nosso teórico, nesse mesmo Livro II de sua Utopia:
“Os padres, da mesma forma que os outros magistrados, são eleitos pelo povo em escrutínio secreto, a fim de evitar a intriga; o colégio sacerdotal da Pólis consagra os novos eleitos. [Estes] presidem as coisas divinas, velam sobre a religião [com minúscula] e são, de algum modo, censores dos costumes. (...) O poder dos padres se limita a interditar os sagrados mistérios aos homens reconhecidamente pervertidos [aqui, nenhuma alusão à penitência e ao seu fruto próprio: a volta ao estado de graça; a religião, ao modo kantiano, transformou-se numa pura e simples moral humana]. (...) A educação da infância e da juventude é confiada ao sacerdote [numa repetição do erro de Platão na República: retirar antinaturalmente as crianças do seio da família]. (...) Os padres escolhem suas mulheres na fina-flor da população [quê????]. As próprias mulheres não são excluídas do sacerdócio, conquanto que sejam viúvas e de idade avançada [hã???]. Não há magistratura mais honrada que o sacerdócio. A veneração que se dedica aos padres é de tal modo profunda que, se algum deles comete uma infâmia, não comparece em juízo, mas é abandonado a Deus e à sua própria consciência [nenhum sinal do caridade cristã e da graça sacramental, que reorienta o pecador para a sua salvação]”.
Em suma, nesse brevíssimo trecho, Morus faz o seguinte: a) reduz a religião a uma simples prática moral; b) relega-a a um papel político de censora dos costumes, sem nenhuma alusão à ordem da graça; c) faz com que a religião seja proveniente das escolhas humanas, na medida em que os sacerdotes são exclusivamente eleitos pelo povo; d) propõe o sacerdócio feminino, contra as leis da Igreja; e) desagrega radicalmente a família (célula-mater da sociedade cristã), na medida em que priva a mãe dos seus filhos; f) faz com que a religião dependa in primis do Estado, pois este define até mesmo o número de sacerdotes que deve haver na Pólis, como se lê noutro trecho desse mesmo segundo livro da Utopia; etc.
O fato de Morus ter sido declarado santo e mártir, por sacrificar-se em razão do odium fidei do rei Henrique VIII — que fez um país inteiro apostatar —, não impediu a Igreja de colocá-lo, por razões teológicas e magisteriais, no Índex dos Livros Proibidos, em 1559, no pontificado do Papa Paulo IV. A propósito, é muito importante ressaltar que a idéia de apostasia perde totalmente o sentido, se levarmos em conta as idéias de Morus expressas acima (sobretudo a de que a Religião é uma pura e simples questão de foro íntimo de cada consciência individual). Isto torna incompreensível, do ponto de vista meramente humano, o seu martírio — ocorrido por não aceitar a apostasia de Henrique VIII. Só mesmo uma superabundância de Graça o pode explicar.
É digno de nota o fato de a Utopia ter sido publicada pela primeira vez na Basiléia por ninguém menos que Erasmo de Roterdã, grande amigo de Thomas Morus e inimigo notório da Igreja e de suas leis, assim como do modus vivendi dos monges, que considerava sem nenhum sentido.
Voltaremos, no próximo texto sobre o tema, às utopias humanistas de Morus.
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