quarta-feira, 25 de março de 2009

Dois amores, duas cidades: A reforma

Nota: Trazemos a nossos leitores o Capítulo III (A reforma), do livro “Dois amores, duas cidades”, do grande Gustavo Corção.  Tenham uma boa leitura.

Lutero, o protótipo dos tempos modernos

1. Um dos fatos que mais brutalmente marcou o século XVI, e depois tôda a moderna civilização, foi sem dúvida a desobediência de Lutero. E o que que pretendemos mostrar neste capítulo é que a Reforma pro­testante se inscreve na mesma corrente, na mesma descarga espiritual que produziu a Renascença.

À primeira vista parece que o luteranismo, surgido histo­ricamente em reação ao sibaritismo que imperava em Roma, tem de ser compreendido como um fenómeno de inspiração contrária à eclosão renascentista. Lembrando a oposição que se levantou entre Lutero e Erasmo, confirmava-se a ideia de um radical antagonismo entre Lutero e o espírito renascentista. Lutero seria um reacionário, uma alma contrária ao vento da nova era. E foi nessa lamentável méprise que caiu o histo­riador.

Henri Pirenne: "Pode-se dizer que a Renascença armou a seu modo o problema religioso. Mas não fez mais do que esboçar a solução moderna, prudente e aristocrática que preparava para ele. A Reforma se atravessou no caminho com ímpeto, violência, intolerância, mas também com a fé profunda e a necessidade apaixonada de chegar a Deus e à salvação, com que havia de conquistar e subjugar tan­tas almas. Entre a Reforma e a Renascença, nada de co­mum. A bem dizer se opõem. A Reforma recoloca o cristão no lugar do homem, escarnece da razão, humilha-a, mesmo quando afasta e condena o dogmatismo. Lutero é muito mais aparentado com os místicos da Ida­de Média do que com os humanistas seus contemporâ­neos." (Histoire de 1'Europe, Alcan, 1936, pág. 394.)

É difícil encontrar em página de historiador sério uma passagem com maior número de disparates. Vítima do precon­ceito agnóstico, o autor vê uma oposição superficial e parece esquecer-se de que há inúmeros pares em que uma concordância profunda se manifesta com discordâncias epidérmicas. Haverá entre a Reforma e a Renascença todas as diferenças que quise­rem esmiuçar: debaixo delas está o Individualismo, traço comum, marca essencial dos dois movimentos.

O tom apaixonado de Lutero, para Henri Pirenne, se parece com o de Savonarola, ou com o tom apaixonado de São Vicente Ferrer a puxar filas de flagelantes pelo caminho da Europa, no crepúsculo da Idade Média. Conclui então que Lutero é um medieval! Mas se escarnece e humilha a razão, mais do que nunca se afirma um moderno, que nos intervalos do cientificismo é cético para a metafísica e para a teologia. Também não é bem fundada a afirmação de que a Reforma recoloca o cristão no lugar do homem. Evidencia-se aqui o embaraço em que fica o historiador desse período quando não sabe muito bem o que é um cristão, e talvez não saiba exatamente o que é um homem. Ao contrário disso, e apesar de algumas aparências, Lutero trouxe em sua reforma violentamente antinômica um reforço para o antropocentrismo da nova civilização. Separando total­mente a fé das obras, a ordem da graça da ordem da natu­reza, Lutero deixava o homem no mundo entregue aos critérios do mundo. "Peca fortemente e crê fortemente!" Tratando o mundo com pessimismo e desprezo, enquanto religioso, não se opunha a um otimismo temporal, antes o alimentava. Na teo­logia da graça, Lutero foi um "exteriorista", quase diríamos um barroco, porque para ele o princípio divino, em vez de ser o remédio penetrante, curativo, transformante, que abre as portas do mais íntimo de nosso íntimo para habitação da Trindade, era uma proteção exterior, uma espécie de cobertura divina da irremediável podridão humana. Na teologia da justiça pela Fé, de tal modo a separa das obras, por ele desprezadas, que aca­ba tangenciando a doutrina de Pelágio que superestima as obras humanas na economia da salvação.

Onde, porém, se encontram a Reforma e a Renascença co­mo dois galhos da mesma cepa é na maneira de conceber o homem, isto é, no Individualismo. Para Jacques Maritain isto é tão claro, e tão fundamental, que não hesitou em dar ao estudo feito em Trois Rejormateurs o título: Luther ou l'ave-nement du Mói; na epígrafe colhida em Fichte acrescenta este título ao reformador: Lê prototype de ages modernes.

Nesse admirável estudo, o autor nos mostra o drama espi­ritual de Lutero, que consistia precisamente num transbordamento da sensibilidade, por onde se vê mais uma vez o traço característico do homem do século XVI.

Jacques Maritain: "Ele parece ter procurado antes de tudo, na vida espiritual, o que os autores chamam consolações sensíveis, e se haver apegado apaixonadamente a esse gosto experimental da piedade, a esses confortos que Deus envia às almas para atraí-las, mas que também retira quan­do quer, e que não passam de meios. Para Lutero, ao contrário, o que importa antes de tudo é sentir-se em es­tado de graça (...) Uma veemente nostalgia mística, numa alma agitada e carnal, destorcendo todas as lições dos espirituais, transformava-se assim num apetite brutal de saborear a própria santidade." (Trois Réformateurs, Plon, 1925, pág. 8.)

"O que logo impressiona na fisionomia de Lutero é o egocentrismo: algo muito mais sutil, mais profundo e mais grave do que o egoísmo. Um egoísmo metafísico. O eu de Lutero torna-se praticamente o centro de gravitação de to­das as coisas, sobretudo na ordem espiritual: e o eu de Lutero não é só as querelas e paixões de um dia: ele tem um valor representativo, é o eu da criatura, o fundo incomunicável do indivíduo humano. A Reforma tirou os freios do eu humano na ordem espiritual e religiosa; a Renascença (quero dizer o espírito que animava a Renas­cença) tirou os freios do eu humano na ordem das ati-vidades naturais e sensíveis." (Op. cit. págs. 19 e 20.)

Aliás, é nesse estudo admirável, de proveitosíssima leitura para a compreensão de muito fenómeno contemporâneo, que Jacques Maritain desenvolve a famosa distinção entre o indivíduo e a pessoa a que já nos referimos. Essa distinção capi­tal é, de certo modo, paralela à que fizemos aqui entre amor-de-si-mesmo e amor-próprio, e a outra entre Homem-Interior e Homem-Exterior. Referem-se todas as perspectivas de visada e de valorização do homem, e pode-se dizer sem receio de exa­gero que o drama do mundo contemporâneo vem da confusão, da indistinção, da troca de perspectivas, não apenas nos tratados de filosofia e nos recintos académicos, mas na vida mesma das sociedades, e no sangue da civilização, até os vasos capilares.

Maritain: "O que é afinal o Individualismo moderno? Um engano, um qui pró quo: a exaltação da individualidade ca­muflada em personalidade, e o correlato aviltamento da verdadeira personalidade." (Pag. 29.)

A história de Lutero, como a de Jean Jacques Rousseau, é uma ilustração exata e cruel dessa doutrina. Nesse sentido, ao contrário do que diz Henri Pirenne, Lutero é um dos homens mais representativos da Renascença; e mais, é um dos homens que mais influíram no fenómeno da indiferença intelectual e moral que se revestirá com a denominação de "liberalismo". Sua constituição psíquica tornava-o um vibrátil detector das ondas de ressentimento desencadeadas no fim da Idade Média e ensinadas pelo nominalismo florescente. Foi um ressonador, talvez semiconsciente, um tipo de homem representativo-nega-tivo, mais receptor do que transmissor, como mais tarde Adolf Hitler. Porta-voz de melindrados, intérprete de amargores, reali­zou mais uma vez o paradoxo do zelo de amor-próprio tão en-contradiço nas vésperas das apostasias: o mesmo zelador que apresenta, nervoso e intolerante, em defesa da pureza da Igreja, bruscamente abandona a mesma Igreja que dizia defender.

Foi um superficial no sentido mais ontológico e trágico do termo — sim trágico, por exprimir aquele outro paradoxo do amor-próprio ferido: o eu em torno do qual o egocentrismo se move não é um eu verdadeiro, nem um verdadeiro centro, é antes a projeção, a exteriorização ou a inflação que a desordem do amor-próprio produz.

Os alemães protestantes, diz ainda Maritain, pedem que ad­miremos a grandeza de Lutero. Grandeza infra-humana, elemen­tar, como as que chamamos de "força da natureza"; mas não grandeza humana propriamente dita.

O Nominalismo de Lutero

2 . Uma tal pletora de sensibilidade ha-de via de se traduzir necessariamente numa atitude antiintelectualista, no que se en­contrava, mais uma vez, com a tendência da época. Sob esse ponto de vista, e apesar das enormes dife­renças tanto nas consequências como nas motivações profun­das, Lutero respirava o mesmo ar em que viviam Erasmo e Tomás Morus, que com toda sua imensa generosidade e seu santo heroísmo não escapou da moda nominalista e da depres­são filosófica.

A reação antidoutrinária, antifilosófica de Lutero toma proporções monstruosas. "Aristóteles é o baluarte ímpio dos pa-pistas", "se ele (Aristóteles!) não tivesse existido em carne e osso eu não teria nenhum escrúpulo de o considerar um diabo". Mas é da própria razão que Lutero diz os mais violentos hor­rores:

Lutero: "a razão é a maior p. . . do diabo; por sua natureza e sua maneira de ser, ela é uma p. . . nociva; é uma pros­tituta, a p ... principal do diabo, uma p ... roída de es­crúpulos e lepra, que devíamos esmagar com os pés, ela e sua sabedoria ... ... Ela é e deve ser afogada no batismo . . . ela merecia, a abominável, ser relegada aos mais sujos lugares da casa, às latrinas."

Essas passagens que transcrevemos com desgosto estão nas páginas 43, 46 e 47 do livro citado de Maritain, onde o leitor encontrará as referências precisas das fontes.

É preciso não esquecer que Lutero era nominalista por for­mação, e nominalista por índole; coisa que felizmente não passou despercebida do autor do Século XVI e XVII da História Geral da P.U.F.

Roland Mousnier: "Lutero, Calvino e todos os reformadores foram nominalistas. O dogma católico se interpreta muito bem em termo de realismo, e muito mal em termos de nominalismo. Tomemos por exemplo a Encarnação. Para os realistas, o Verbo que se encarnou em Jesus, não assu­miu os defeitos, os vícios, as fraquezas, as corrupções do homem. Ele se fez Homem. Uniu-se ao Arquétipo ideal do Homem. Mas para os nominalistas não há arquétipos. O "homem" é um nome cômodo que serve para designar os indivíduos aliás diferentes de uma coleção. Deus se tornar homem é assim incompreensível." (Op. cit. pág. 71.)

Devemos ressalvar algumas imprecisões filosóficas do vo­cabulário do autor supracitado. Ele se exprime como platónico. Para o realista de formação aristotélico-tomista não é em termos de uma união com o Arquétipo ideal que se formula a Encar­nação, e sim de uma união com a natureza humana, realmente existente em cada indivíduo humano. Também devemos notar que "incompreensível" no sentido próprio de realidade excessi­va, ou misteriosa, que a razão não logra abranger e esgotar, é também para nós o dogma da Encarnação. Por isso preferiría­mos no texto acima usar o termo "cognoscível", "pensável" ou "inteligível", em vez de "compreensível". Feitos esses reparos devemos reconhecer neste volume (Lês XVI et XVII Siècles) da Histoire Générale dês Civilizations da P.U.F. um discerni­mento filosófico que nem sempre se encontra nos outros volu­mes, e que não encontramos em Pirenne.

Otimismo e pessimismo

3. Não pretendemos, nos exíguos limites deste capítulo, desenvolver um es­tudo sobre Lutero. Queremos apenas apontar alguns traços seus e de suas obras que nos ajudem a compreender o fenómeno mais amplo e confuso que se processou nos séculos XV e XVI. E um desses traços é o "pessimismo" profundo e radical que até agora só encontráramos no maniqueísmo. Já dissemos atrás que para Lutero, por força de seu nominalismo e de seu sensualismo, a graça santificante não restaura na alma a justiça afetada ou destruída pelo pecado; não penetra, não cura, não transforma, mas apenas cobre. Debaixo dessa cobertura divina o homem continua incurável. Ora, a respeito da relação dos sexos e do matrimónio o seu pessimismo se formula com a brutalidade e a simplicidade que nos lembra os albigenses. Para Lutero, o dever conjugal jamais se realiza sem pecado (Weim. X, P.II, 304, 6, 1522) que "Deus cobre para que possa haver pessoas casadas" (opp. exeg. lat. IV. 10). Mais tarde, em 1538 (Weim XLII, 582, 29. 31) dirá mais nitidamente:

Lutero: "A palavra de Deus: crescei e multiplicai- vos, não é um preceito; mais do que preceito é obra divina à qual não podemos nos subtrair ainda que o quiséssemos; ela é tão necessária para mim como ser um homem, e mais ne­cessária do que comer, beber, ir à latrina, escarrar, dormir e acordar."

E por aí além. Ao mesmo tempo Lutero naturaliza e libera as relações sexuais que não podemos evitar, e as torna estranhas ao universo da graça e da santidade. E o pobre amor humano, legítimo ou culpado (a diferença terá de ser encontrada nos cos­tumes e nas leis da cidade) transcorre todo no sombrio mundo da culpa essencial, da malignidade intrínseca, com o consolo da extrínseca cobertura ou tolerância de Deus.

Com este exemplo, e outros, vemos na Reforma um feitio complementar que vem suprir o que faltava no feitio da Re­nascença. O pessimismo de Wittenberg se articula bem com o otimismo de Florença, formando um conjugado de forças com o mesmo resultado: o imanentismo, a integração do Homem no Mundo, e a Autonomia absoluta para aí fazer, desde que logre o poder físico, o que lhe parecer consentâneo. Na continuação do processo de laicização e mundanização, o Protestantismo, co­mo um todo inorgânico, se decomporá em mil e tantas seitas, e perderá o que pudesse ter de conteúdo religioso: será o mais adaptado simulacro de religião para uma sociedade liberal. Diremos isto sem nenhum desejo de ajuizar da lealdade e da sinceridade das pessoas que praticam (acreditamos que muitas o pratiquem santamente pela força e pela infinita liberdade da misericórdia divina) essa espécie da aspiração ao cristianismo real. Receamos porém que aquela lealdade e aquela sinceridade, sendo as virtudes máximas dessa atmosfera religiosa, signifiquem que, nelas, o Homem tomou o lugar de Deus, a livre interpre­tação substituiu-se ao Magistério da Igreja, e o juízo próprio superpôs-se à humildade e à submissão de caridade.

Por seu lado, a cultura também produziu antinomias seme­lhantes nos quatro séculos de Civilização Moderna. Até Rous-seau ainda se fala em otimismo e em santidade natural. Mas à medida que se aproxima o crepúsculo os homens começam a duvidar da razão e da natureza. Quando chegamos em Freud verificamos que a reviravolta foi completa como a rotação que transforma o dia em noite: o homem que nascia naturalmente bom, nasce agora naturalmente perverso.

Fonte: Gustavo Corção,

Dois Amores, duas Cidades,

Capítulo III; “A Reforma”, 

Agir 1967.

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