sábado, 22 de agosto de 2009

A encíclica Caritas in Veritate de Bento XVI: continuação ou ruptura?

Dici.org

Tradução FSSPX/Brasil

Caritas in Veritate

Assinada pela mão de Bento XVI em 29 de junho de 2009, a encíclica Caritas in veritate foi publicada em 7 de julho. À primeira leitura, o documento romano dá a impressão que Jean-Marie Guénois traduz em Le Figaro: “Notável em muitas passagens, (este texto) é pouco acessível em seu conjunto. Querendo tratar sem dúvida de demasiados assuntos, ele se dispersa, e o fio condutor ‘o amor na verdade’ deixa de ser evidente. É o preço, diz-se, dos textos de muitos redatores. (…) O risco é que a forma deste texto prejudique seu impacto.”  Os vaticanistas se esforçaram por identificar as diferentes personalidades consultadas pelo papa para escrever esta encíclica social de mais de 150 páginas. Foram citados economistas como Stefano Zamagni ou especialistas em finanças como o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi, editorialista do Osservatore Romano para assuntos econômicos e financeiros, bem como o especialista em doutrina social M. Reinhard Marx, o segundo sucessor de M. Ratzinger no arcebispado de Munique. Apesar de tudo, este documento traz bem a marca de Bento XVI, que nele oferece um exercício prático de “hermenêutica da continuidade”, tal como a definiu no princípio de seu pontificado, diante da cúria romana, em dezembro de 2005.

É o que ele mesmo escreve no capítulo I de Caritas in veritate, onde se situa claramente em continuidade com a mensagem da encíclica de Paulo VI Populorum progressio (1967), afirmando que também suas duas encíclicas se inscrevem na linha constante do ensinamento da Igreja: “O laço que existe entre a Populorum progressio e o Concílio Vaticano II não representa um corte entre o magistério social de Paulo VI e o dos papas que o precederam, sendo dado que o Concílio é um aprofundamento desse magistério na continuidade da vida da Igreja. (…) Não há duas tipologias de doutrina social, uma pré-conciliar e outra pós-conciliar, mas um ensinamento único, coerente e ao mesmo tempo novo. É justo assinalar as características próprias de cada encíclica, do ensinamento de cada Pontífice, mas sem perder nunca de vista a coerência do conjunto do corpus doutrinal. Coerência não significa fechamento, mas antes fidelidade dinâmica a uma luz recebida. A doutrina social da Igreja ilumina com uma luz que não muda os problemas sempre novos que surgem. Isso preserva o caráter ao mesmo tempo permanente e histórico deste patrimônio doutrinal que, com suas características específicas, pertence à Tradição sempre viva da Igreja” (n°12). – Rejeição de um corte entre pré e pós-conciliar, busca de uma fidelidade que não seja fechada, mas dinâmica, afirmação de uma Tradição sempre viva, tais são os temas desde sempre familiares do pontificado atual.

Duas perguntas se impõem: 1. A encíclica de Paulo VI Populorum progressio não introduziu realmente nenhuma ruptura com o ensinamento anterior ao Vaticano II? 2. E, se há ruptura, como a Caritas in veritate pode remediá-lo?

1. A Populorum progressio analisada por Romano Amerio

Em sua obra Iota unum, étude sur les variations de l’Eglise catholique au XXe siècle (Nouvelles Editions Latines, 1987), Romano Amerio analisa a encíclica de Paulo VI nestes termos: “A Igreja se encarregou, no Vaticano II, de tomar parte diretamente no aperfeiçoamento temporal, tentando assim fazer o progresso dos povos voltar à finalidade do Evangelho. A encíclica Populorum progressio explicita a doutrina [nova.; N. do A.].” O filósofo italiano denuncia então “a mudança de perspectiva que inverte a teleologia fazendo do progresso técnico e utilitário se não o fim, ao menos a condição prévia da perfeição espiritual e da ação da Igreja. […] É verdade que o termo para o qual se dirige o desenvolvimento é ‘um crescimento integral’ e um humanismo destinado a integrar-se em Cristo, tornando-se assim um humanismo transcendental. Mas a relação entre o todo que é o homem humanamente desenvolvido e o outro todo que é o homem sobrenaturalizado fica indeterminado” (pp. 601-602). – Em outras palavras, o desenvolvimento humano integral vê de modo indeterminado, ou seja, vago ou confuso, a relação entre a natureza e a graça. O que suscita outra pergunta: a encíclica Caritas in veritate, que quer tratar precisamente desse “desenvolvimento humano integral”, escapa da influência que a obra Humanismo Integral, de Jacques Maritain, que se tornou personalista, exerceu sobre Paulo VI? Uma frase, no n° 42, dá a resposta: “A verdade da globalização como processo e sua natureza ética fundamental derivam da unidade da família humana e seu desenvolvimento no bem. É preciso pois trabalhar sem cessar com a finalidade de favorecer uma orientação cultural personalista e coletiva, aberta à transcendência, do processo de integração planetária.”

Voltemos a Romano Amerio, que chama de catolicismo secundário” a tendência antropocêntrica manifestada no Concílio Vaticano II, em particular na Gaudium et Spes (n° 12 e n° 24). Ele o explica: “A religião tem por efeito certamente a civilização, e a história da Igreja o demonstra, mas não tem por fim nem por efeito primeiro a civilização no sentido de aperfeiçoamento terrestre. O estado presente da civilização [moderna; N. do A.] é de independência e ‘asseidade’: o mundo rejeita toda dependência que não seja de si mesmo. A Igreja parece temer ser rejeitada, como o é positivamente por grande parte do gênero humano. Então ela procura descolorir suas próprias particularidades meritórias e colorir, em contrapartida, os traços que tem em comum com o mundo: todas as causas jurídicas sustentadas pelo mundo têm o apoio da Igreja. Ela oferece ao mundo seus serviços e procura pôr-se à frente do progresso humano. Dei a esta tendência o nome de cristianismo secundário” (p. 415).

E Amerio expõe a crítica teológica desse “cristianismo secundário”: “O pecado específico do cristianismo secundário, que vicia a cidade do homem, é a caducidade do transcendente. Ela coincide com o pecado que Santo Agostinho chama de inadvertência e Santo Tomás de inconsideração, no qual eles fazem consistir o pecado dos anjos. É que a inadvertência do fim celeste último perturba de alto a baixo a religião e inverte a perspectiva: ‘ Temos aqui a nossa cidade permanente e não buscamos outra para o futuro’ (ao contrário de Hebr., XIII, 14). Donde a perspectiva final puramente terrestre, redução do cristianismo para servir de meio, apoteose da civilização [moderna; N. do A.]” (pp. 416-417).

Caritas in veritate quer opor-se a essa “inadvertência do fim último celeste”, em particular em sua introdução: “No contexto sociocultural atual, em que a tendência a relativizar a verdade é corrente, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento não só útil, mas indispensável para a edificação de uma sociedade boa e de verdadeiro desenvolvimento humano e integral” (n° 4). O mesmo em sua conclusão: “O fechamento ideológico com respeito a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o Criador e correm o risco de esquecer também os valores humanos, apresentam-se hoje entre os maiores obstáculos para o desenvolvimento” (n° 77.) Mas não podemos evitar ver que essa denúncia do ateísmo, da indiferença e do relativismo contemporâneos é contrariada e enfraquecida pela vontade de afirmar uma continuidade com o ensinamento conciliar, cujo espírito fundamental Amerio tão bem conseguiu desentranhar de sua formulação equívoca.

Caritas in veritate sobre a questão da liberdade religiosa

Consegue Bento XVI em Caritas in veritate anular a oposição entre pré e pós-conciliar? Tomemos apenas um exemplo particularmente significativo, e que estará entre os temas estudados nas próximas discussões doutrinais entre o Vaticano e a Fraternidade São Pio X: a liberdade religiosa.

A propósito da liberdade religiosa escreve Bento XVI: “Se é verdade, por um lado, que o desenvolvimento necessita das religiões e das culturas dos diferentes povos, não é menos verdadeiro, por outro lado, que é necessário operar um discernimento apropriado. Liberdade religiosa não quer dizer indiferença religiosa e não implica que todas as religiões sejam equivalentes. Um discernimento concernente à contribuição que podem dar as culturas e as religiões com a finalidade de edificar a comunidade social no respeito ao bem comum revela-se necessário, em particular por parte dos que exercem o poder político. Tal discernimento deverá basear-se no critério da caridade e da verdade. E, porque está em jogo o desenvolvimento das pessoas e dos povos, deverá levar em conta a possibilidade de emancipação e de integração na perspectiva de uma comunidade humana verdadeiramente universal. ‘O homem todo e todos os homens’ é um critério que permite avaliar também as culturas e as religiões. O Cristianismo, religião do Deus que possui face humana, traz em si tal critério” (n° 55).

Mas, um pouco mais acima, o papa não exclui as outras religiões que cumprem, elas também, a seu modo de ver, esses critérios: “Outras culturas e outras religiões também ensinam a fraternidade e a paz, e têm pois grande importância para o desenvolvimento humano integral” (ibid.). Portanto, se a Igreja, única Arca da Salvação, é posta no mesmo nível das outras religiões, como se deveria compreender a Introdução da encíclica, onde se escreve: “a adesão aos valores do cristianismo é um elemento não somente útil mas indispensável para a edificação de uma sociedade boa e de um verdadeiro desenvolvimento humano integral”? O cristianismo é indispensável, mas não exclusivo? Outras religiões (quais? a encíclica não o diz) podem contribuir para o desenvolvimento humano integral, ou seja, aberto à transcendência, mas essa transcendência se identifica com a salvação eterna? Não confunde ela, como sublinhava Amerio, o plano natural e o plano sobrenatural?

No parágrafo seguinte, o papa afirma: “A religião cristã e as outras religiões só podem dar sua contribuição para o desenvolvimento se Deus também tiver seu lugar na esfera pública, e isso concerne às dimensões culturais, sociais, econômicas e especialmente políticas. A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este ‘direito de cidade’ da religião cristã. A negação do direito de professar publicamente sua religião e de procurar que as verdades da fé inspirem também a vida pública tem conseqüências negativas sobre o desenvolvimento verdadeiro. Tanto a exclusão da religião do âmbito público como, por outro lado, o fundamentalismo religioso impedem o encontro entre as pessoas e sua colaboração para progresso da humanidade. A vida pública se empobrece, e a política se torna opressiva e agressiva. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados seja porque são privados de seu fundamento transcendente, seja porque a liberdade pessoal não é reconhecida” (n° 56).

Apesar dessa pretensão do “direito de cidade”, estão ausentes da encíclica o reinado social de Jesus Cristo e as instituições cristãs. O papa denuncia bem um ateísmo prático do Estado, mas não vê na raiz desse ateísmo prático a laicidade do Estado: “Quando o Estado promove, ensina ou mesmo impõe formas de ateísmo prático, subtrai de seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se comprometerem com o desenvolvimento humano integral, e os impede de avançar com um dinamismo renovado em seu compromisso por dar uma resposta humana mais generosa ao amor de Deus” (n° 29). Nisso Bento XVI não se afasta do que o cardeal José Ratzinger declarava a Peter Seewald em Le Sel de la Terre (Flammarion/Ciervo, 1997): “Creio que o desenvolvimento da modernidade implica um lado negativo, a volta da subjetividade; mas o elemento positivo é a oportunidade de haver uma Igreja livre num Estado livre, se podemos expressar-nos assim. Aí residem as oportunidades de uma fé mais viva, porque mais profunda e mais livremente fundada. Ela certamente deve defender-se da volta do subjetivo e seguir tentando fazer-se ouvir pela opinião pública” (p. 231).

Em outra parte, o papa constata o fato da globalização, mas não parece querer ver neste fato um efeito de uma ideologia: o globalismo, ideologia estranha e até hostil ao catolicismo. “Na nossa época, o Estado se encontra na situação de ter de fazer frente aos limites que suscita à sua soberania o novo contexto comercial e financeiro internacional, caracterizado por uma mobilidade crescente dos capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contexto modificou o poder político dos Estados. Hoje em dia, quando muitas lições são dadas pela atual crise econômica, na qual os poderes públicos do Estado se vêem diretamente envolvidos na correção dos erros e disfunções, uma nova avaliação de seu papel e de seu poder parece mais realista; estes devem ser sabiamente reconsiderados e repensados para estar em condições, por meio até de novas modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo contemporâneo” (n° 24) — Os Estados não têm senão de corrigir “os erros e as disfunções”, frutos da globalização, sem buscar combater, contra a corrente, a ideologia globalista? Em Caritas in veritate, nenhuma ideologia é designada por seu nome, nem o liberalismo, nem o socialismo, nem o globalismo. Os efeitos são denunciados, mas as causas não são nomeadas. Não se pode afirmar claramente o que enunciava Romano Amerio: “O atual estado da civilização é de independência e ‘asseidade’: o mundo rejeita toda dependência salvo de si mesmo”? Os remédios por tomar proviriam, assim, um pouco menos da medicina sintomática, que só se ocupa dos efeitos; iriam à causa do mal.

O comprometimento é evidente com respeito ao governo mundial. No capítulo V, intitulado “A colaboração da família humana”, Bento XVI se mostra muito crítico com relação à eficácia real dos organismos internacionais. Ele lança novamente o apelo de seu antecessor João XXIII na encíclica Pacem in terris (1963) pelo surgimento de uma “verdadeira Autoridade política mundial”: “É urgente que se estabeleça uma verdadeira Autoridade mundial tal como já esboçada por meu antecessor, o bem-aventurado João XXIII” (n° 67). Nesta encíclica, o papa que convocou o Concílio Vaticano II considerava que os problemas de dimensões mundiais “não [podem] ser solucionados senão por uma autoridade pública cujo poder, constituição e meios de ação também assumam dimensões mundiais”.

E Bento XVI não hesita em desenhar o retrato desta nova entidade mundial: “Tal Autoridade deverá ser regulada pelo direito, conformar-se de maneira coerente aos princípios de subsidiariedade e solidariedade, ordenar-se à realização do bem comum, comprometer-se com a promoção de um autêntico desenvolvimento humano integral que se inspire nos valores do amor e da verdade.” Deverá, por outro lado, ser reconhecida por todos, gozar de poder efetivo para garantir a cada um a segurança, o respeito da justiça e dos direitos, e “obviamente possuir a faculdade de fazer as diferentes partes respeitar suas decisões, bem como as medidas coordenadas adotadas pelos distintos fóruns internacionais” (ibid.).

O papa preconiza ali os meios concretos e eficazes para o “desenvolvimento humano integral”? Essa autoridade mundial considerará o cristianismo “um elemento indispensável para a edificação de uma sociedade boa e de um verdadeiro desenvolvimento humano integral”? Não continuará ela fundamentalmente independente de toda religião, ou seja, laica, não se inspirando senão nos “valores do amor e da verdade” em sentido laico?

Os comentários dos prelados romanos que apresentaram a encíclica à imprensa em 7 de julho são particularmente reveladores. Interrogado sobre a questão da “urgência da reforma da Organização das Nações Unidas” que Bento XVI demanda, M. Giampaolo Crepaldi, secretário do Conselho Pontifício Justiça e Paz, afirmou que, desde a Pacem in terris de João XXIII, “a configuração dos problemas mudou”, constatando uma “inadequação reconhecida pelas próprias Nações Unidas”. Ele sublinhou a necessidade “de melhor adaptar as instituições internacionais em face do aparecimento de problemas e de sua complexidade”. No entanto, aos olhos de M. Crepaldi, “no plano técnico, é impensável pedir à Santa Sé uma proposta orgânica e técnica, ou seja […], uma formulação no plano jurídico e político da reforma das Nações Unidas”.

Caritas in veritate não demanda um “supergoverno, um governo mundial”, afirmou por seu lado o cardeal Renato Raffaele Martino, Presidente do Conselho Justiça e Paz. No entanto, as organizações atuais deveriam ter esta autoridade política mundial: “Por esta razão o papa demanda a reforma das Nações Unidas.” “A Santa Sé, tal como o papa, demanda esta reforma das Nações Unidas, mas não diz o que é preciso fazer, como a reforma deve ser implementada”, insistiu. “Quando a Caritas in veritate fala de uma autoridade para o governo da globalização, demanda uma nova governance [em inglês] e não um novo governo mundial”, indicou por seu lado Stefano Zamagni, membro do Conselho Pontifício Justiça e Paz. — Então, “um autêntico desenvolvimento humano integral” seria promovido por uma nova governança mundial? Apesar do retrato ideal que traça o papa, gostaríamos de ter precisões sobre a influência real dessa governança.

A encíclica convida a uma “fidelidade dinâmica”, a uma “nova síntese humanista”, “a uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração planetário”. Essa busca permanente de um novo equilíbrio, sempre por vir, mostra que a conciliação entre o magistério pré-conciliar e o ensinamento pós-conciliar não é evidente. “A doutrina social da Igreja ilumina com uma luz que não muda os problemas sempre novos que surgem”, declara a encíclica. A iluminação é aqui muito fraca; a luz da Tradição não pode ser filtrada.

Do editorial de Dici.org

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