sábado, 29 de agosto de 2009

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas

Carlos Nougué

Anti Sedevacante 2

Parte IV

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O Sedevacantismo

Passar-se-á, agora, a responder a cada item da exposição que fizemos da tese de A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles. (Essa exposição, numerada, se encontra na Parte II deste artigo, neste mesmo site.) O objetivo de tais respostas particulares é não deixar sem esclarecimento nem sequer o que não é central na tese adversária, e isso porque, conquanto não central, nem por isso deixa de ter importância e conexão no conjunto da tese.

1) Em resposta ao item 1, deve-se dizer que pela graça santificante certamente se dá um novo nascimento, o do novo homem em Cristo (“Não te maravilhes de ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai: assim é todo aquele que é nascido do Espírito”, Jo., III, 7-8; “sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre”, I Ped., I, 23; “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram: eis que tudo se fez novo”, II Coríntios, V, 17); assim como também certamente a fé teologal é infalível em seu ato interno (cf. Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 3). Sucede todavia que como esse ato é, nesta vida, essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe (cf. nossa Refutação, e especialmente Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 290), para que saibamos com toda a certeza em que devemos crer — e pois o que é o erro ou heresia —, as verdades de fé têm de ser propostas por um mestre infalível em seu ato externo: Nosso Senhor Jesus Cristo e o Magistério da Igreja, este como prolongamento d’Aquele e cingido aos princípios de fé dados pela Revelação e pelo Traditum.

2) Em resposta ao 2, deve-se dizer que a afirmação segundo a qual “a fé teologal e a graça santificante são a essência mesma do Cristianismo, e delas depende tudo o mais”, já em si mereceria reparos: porque, com efeito, não é possível a caridade não ser da essência mesma da vida do cristão, se é ela “o vínculo da perfeição” (Col., III, 14); se “ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até o ponto de transportar montes, se não tiver caridade, não sou nada” (I Cor., XIII, 2; grifo nosso); se agora “permanecem [...] a fé, a esperança e a caridade; porém a maior delas é a caridade”, que “nunca há de acabar” (I Cor., XIII, 13 e 8); enquanto passarão, no céu, não só as profecias e a esperança, mas a própria fé. Quanto ao que aqui mais importa, porém, o fato é que o fim da civilização cristã, a partir do século XIII, se deveu não a um crescente culto do dever em geral e a uma crescente obediência cega às autoridades da Igreja, e sim a um crescente culto do dever meramente político e a uma crescentemente exclusiva obediência às autoridades temporais — em detrimento não só do verdadeiro dever de religião para com Cristo, mas do devido assentimento e obediência a seu Vigário. É bem verdade que mesmo a defesa católica, incluída a tomista, contra tal tendência aceitou defender a moral no novo terreno perigosamente subjetivo da consciência: “Embora”, escreve o Padre Calderón em Concilio Vaticano II: la religión del hombre, “sustentassem a legitimidade da sabedoria cristã como regra de conduta, deixaram que se estabelecesse a consciência como regra imediata, o que, conquanto não chegue a ser falso, é desnecessário e inconvenientemente expresso. Pois bem”, prossegue o Padre, “à medida que a crítica que o pensamento moderno e as novas ciências faziam à teologia e à filosofia escolástica foi ganhando terreno, introduzindo o veneno do subjetivismo, o tribunal interior da consciência ia livrando-se da tirania da teologia, abrindo as portas para relativismo moral.” Mas uma coisa é reconhecê-lo, e reconhecê-lo como algo que conduziria ao Concílio Vaticano II, o que é de todo correto; outra, muito diferente, é atribuir à docilidade e obediência ao magistério da Igreja tal efeito, o que, por quanto vimos, é de todo falso. 

3) Em resposta ao 3, deve-se dizer que sem dúvida a graça não é um mero auxílio ao bom comportamento e ao combate aos vícios e paixões; mas não deixa de sê-lo também, e em alto grau; e, se nos ordena ela, antes de tudo, a prestar a devida glória a Deus, ordena-nos também a que tenhamos a devida docilidade e obediência ao magistério da Igreja, que, como vimos na “Refutação da primeira idéia básica da tese adversária”, é a regra próxima da fé. A fé, obviamente, não decorre da obediência, dando-se antes o inverso; mas, com respeito ao magistério da Igreja, a implica. Ora, a heresia protestante minou a fé solapando, antes de tudo e precisamente, sua ordenação à docilidade e obediência ao magistério da Igreja, porque, com efeito, a esse solapar leva não só o princípio luterano da sola scriptura, mas também o do livre exame, pelo qual, precisamente, se “atribui o carisma da infalível verdade à fé individual” (P. Calderón, ibid., p. 291). Vê-se, pois, em que ponto e de que modo se tocam a tese sedevacantista aqui tratada e a heresia luterana (mas veremos que, em última instância, todas as versões do sedevacantismo têm este ponto de contato com o protestantismo).

4) Em resposta ao 4, deve-se dizer que, se a razão formal da fé de fato não é propriamente a autoridade do magistério eclesiástico, mas a mesma autoridade divina e sua Revelação (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 1, corpus: “[...] pois a fé de que falamos não dá seu assentimento a algo que não seja revelado por Deus [...]”; Suma contra os Gentios, I, IX, 3 (53): “Ora, não cremos em verdades que excedam a capacidade da razão humana se não tiverem sido reveladas por Deus)”, permanece, todavia, o fato já firmado de que é o magistério da Igreja a regra próxima da fé. Em outras palavras: não podemos crer senão no que a Igreja afiança tratar-se de verdade divinamente revelada (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 10, corpus: “Tem autoridade para fazê-lo [ou seja, para publicar um Símbolo da fé] quem pode determinar em última instância o que é de fé, para que todos possam a ela aderir de maneira inabalável. Isso, todavia, é da alçada do Sumo Pontífice [...].) Não é pois verdade que o tomar o magistério da Igreja como regra próxima da fé “reduz a fé teologal a mera fé humana”; antes pelo contrário, é o que assegura tratar-se de fé efetivamente sobrenatural e não meramente humana. E, se por um lado é a fé sobrenatural “a única que salva”, por outro lado, repita-se, só o magistério da Igreja nos pode afiançar que se trata de fé teologal, e não de nenhuma contrafação sua.

5) Em resposta ao 5, deve-se dizer que efetivamente, como estabelece Santo Tomás de Aquino, toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. Assim, como diz a tese adversária, qualquer ato da potência intelectiva, potência que tem por objetivo a verdade, será bom se alcançar a verdade; em outras palavras, não tornarão virtuosa a inteligência humana senão os atos seus que alcancem o verdadeiro.

6) Em resposta ao 6, deve-se dizer que de fato nossa inteligência não tem capacidade de conhecer infalivelmente ou com certeza as verdades divinas; com efeito, não as puderam conhecer assim, ou seja, infalivelmente ou com certeza, nem sequer homens como Platão e Aristóteles. Também é verdade, como já dito, que enquanto virtude teologal infusa a fé é infalível em seu ato interno, ou seja, na adesão da inteligência às verdades divinas; mas, como também já visto, não é verdade que seja tal ato ou adesão o que torna discerníveis ou certas aos homens as verdades de fé, porque o que as torna discerníveis ou certas é a regra próxima da fé: o magistério da Igreja. Por outro lado, ao contrário do que faz a tese adversária, deve-se falar de todo diferentemente quando se trata dos anjos ou de comparar o intelecto humano e o angélico; peca a tese adversária por simplificação “angelista”, um pouco à maneira não só de um Jacques Maritain, mas até de um Descartes ou de um Malebranche. Sim, porque (e citemos extensamente, uma vez mais, o Padre Calderón, ibid., pp. 288-289), “naturalmente, [de potentia absoluta] Deus poderia ter proposto [aos homens] as verdades de fé por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como ocorreu de fato com os anjos. No primeiro instante de sua criação, os anjos ainda não tinham a luz da glória, mas a luz da fé pela qual deviam crer em certas verdades reveladas por Deus. Pois bem, nem sequer a natureza angélica pode conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus formou sobrenaturalmente em sua inteligência certas espécies ao modo de revelação interior. Mas para os homens não convinha essa maneira de revelação, porque ela vai contra sua natureza social. É próprio de homem chegar à verdade ensinado pelo magistério oral de suas autoridades naturais. Daí que Deus, que faz tudo com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma autoridade divina”. Assim é que, se de fato, como diz a tese adversária, sem aquela adesão da inteligência às verdades de fé não se ordenaria o homem a seu fim sobrenatural, nem por isso, e muito ao contrário do que diz a referida tese, tal adesão não se dá por uma suposta “ciência infusa” ao modo angélico, nem o cristão é provido da prerrogativa de inerrância no que diz respeito a quanto necessita para a sua salvação senão enquanto adere aos dados da fé mediante a regra próxima desta, que por própria dotação e assistência divina é o mesmo carisma magisterial da Igreja. 

7) Em resposta ao 7, deve-se dizer que sem dúvida os fiéis devem lutar por sua fé, razão por que, como diz Santo Tomás, Deus não os deixa cair em erro (“si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium”, De veritate, q. 14, a. 2). Aquela luta convém com o nosso livre-arbítrio, que não é suprimido pela graça (assim, Nossa Senhora não deixa de exercer seu livre-arbítrio ao dizer “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”, ainda que fosse imperiosa e ineludível a graça de que era cheia para poder ser a Mãe de Deus); enquanto este “não deixar cair em erro” convém com a graça divina (imenso mistério: tudo é graça, mas permanece o livre-arbítrio; e, conquanto a predestinação dos eleitos seja anterior à previsão de seus méritos, nem por isso deixa de dizer São Pedro (II, I, 10), para explicar que os méritos são causa não da predestinação, mas sim da salvação efetiva: “Portanto, irmãos, ponde cada vez maior cuidado em tornardes certa a vossa vocação e eleição por meio das boas obras, porque fazendo isto não perecereis jamais”). Mas nada disso implica nenhum “instinto” da fé ou, em outras palavras, nenhum sensus fidei individual certo sem confirmação do magistério da Igreja, “instinto” que como já vimos é de corte luterano; implica, porém, a docilidade ao mesmo magistério da Igreja, o único que, como regra próxima da fé — e ao contrário do que diz a tese adversária —, é capaz de fazer ter certeza com relação aos artigos e sutilezas da fé e, pois, de fazer evitar ou rejeitar os erros com respeito a eles.

8) Em resposta ao 8, deve-se dizer que, obviamente, sem professar a existência de Deus ninguém pode professar nenhuns artigos e sutilezas da fé. E, se o afirmar a existência de Deus pertence antes aos preâmbulos da fé, Deus mesmo no-la revelou porque, no estado de natureza ferida, o obscurecimento ou enceguecimento de nosso intelecto por defeitos físicos ou pelas paixões nos pode levar até ao próprio ateísmo (Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 1, a. 2: “Até com relação ao que a razão humana pode investigar a respeito de Deus era preciso que o homem também fosse instruído por revelação divina. Com efeito, a verdade de Deus, investigada pela razão humana, chegaria apenas a poucos [indivíduos], e depois de longo tempo, e com mescla de muitos erros [...]: no entanto, do conhecimento desta verdade depende a salvação do homem, que se encontra em Deus. Para que a salvação, portanto, chegasse aos homens conveniente e certamente, foi necessário que eles fossem instruídos sobre o divino por revelação divina”). Naturalmente, esse mesmo ato de professar a existência de Deus e seus corolários pode dar-se e se dá no interior de almas individuais; com efeito, dissemos nós na “Refutação da primeira idéia básica da tese adversária”: “Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata.” “Mas o católico”, prosseguíamos, “incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé [ou, de certo modo e em certa medida, até pela razão natural, no tocante ao que de Deus pode ela investigar e concluir] ‘se o confirmar’, como diz o Padre Calderón (em A Candeia Debaixo do Alqueire), ‘e no grau em que o confirmar o magistério da Igreja’.” Ora, por isso mesmo não é exato dizer, como o faz a tese adversária, que “as verdades em que o cristão deve crer são-nos como que reveladas por Deus” individualmente, nem, muito menos, que, se “tais verdades nos são ordinariamente propostas pela pregação dos homens da Igreja, e conquanto comumente tal pregação seja a condição para a crença nelas, dizer condição não quer dizer suficiência — ela não basta para que tenhamos fé, e isso porque com ela não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: não tem ela autoridade para tal, ainda que confirmada por milagres. O ato primordial de fé é posto, é infundido por Deus mesmo, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. Por tudo quanto já vimos, tudo isso não passa, de certo modo, de luteranismo mitigado: porque, ao contrário do que quer fazer crer a tese adversária, o magistério da Igreja, enquanto prolongamento de Cristo mesmo e enquanto regra próxima para a crença dos fiéis, é a própria autoridade vicária em matéria de fé. É verdade que não basta o magistério da Igreja para que tenhamos fé; mas é de todo inverdade que, para este efeito, ele não possa ter senão caráter de persuasão; ao contrário, é ele a única garantia de verdade e certeza com respeito à sobrenaturalidade dos dados da fé e, de certo modo e em certa medida, como vimos, até à própria naturalidade de seus preâmbulos.

9) Em resposta ao 9, deve-se dizer que a solução para o dilema causado pelo Concílio Vaticano II e pelo Magistério que dele emerge não pode dar-se com o abandono da “verdadeira docilidade que o católico deve guardar diante do magistério da Igreja” (Padre Calderón, ibid., p. 75). Não se trata de arrostar um “falso dogma de obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos”, como propõe a tese adversária. Não é em si veraz nenhuma oposição entre “o governo do Deus invisível da pura fé” e “um soberano [o Papa] evidente e acessível aos sentidos” que pudesse mudar-se “de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor”. “A Igreja”, diz ainda o Padre Calderón (idem), “é fundada sobre Pedro, e a solidez desta Pedra reside principalmente na autoridade de seu magistério. Por isso, para romper o dilema atual, não se deve prejulgar a credibilidade do magistério com algum critério diferente do que oferece de si mesma a legítima autoridade, porque então se atentará contra a docilidade católica, que tem como única regra próxima da fé o magistério vivo da Igreja.” Este ponto, porém, se desenvolverá na próxima parte deste artigo, quando se refutar a sedevacantista Tese de Cassiciacum, exposta pela primeira vez, em 1973, por M. Guérard des Lauriers, e segundo a qual os papas conciliares são materialiter (materialmente) papas, mas não o são formaliter (formalmente). Veremos então que esta tese peca desde a base, ou seja, desde a utilização imprópria, incomum e obscura de uma analogia da autoridade, e da autoridade papal em particular, com o sínolo humano de corpo e alma.[1]

10) Em resposta ao 10, deve-se dizer que afirmar, como o faz a tese adversária, que “a luta pela fé foi absorvida e neutralizada numa obediência beata, cega e incondicional ao rei terreno” é, por tudo quanto vimos aqui, pelo menos equívoco. É verdade que tal obediência “implica um axioma imoral: o de que a ordem do superior livra o subordinado de qualquer responsabilidade própria”; mas, no caso, de uma responsabilidade própria diante de Deus e da fé. Ora, o “rei terreno”, que é a maneira imprópria e pejorativa como se refere ao Papa a tese adversária, não é “rei” senão por prolongamento e delegação da própria Realeza de Cristo. Logo, obedecer e ser dócil ao “rei terreno” é, em princípio, cumprir precisamente com a devida responsabilidade diante de Deus e da fé. Para que se incorresse, em tal caso, na referida imoralidade, seria preciso ou que o referido “rei” de algum modo não fosse “rei” (opinião defendida, exatamente, pelos sedevacantistas), ou que, conquanto “rei”, não empenhasse a sua “realeza”, isto é: não comprometesse, como Papa, sua suprema autoridade (tese do Padre Calderón, que decorre, naturalmente, dos princípios por que se fundou e se mantém a Sociedade São Pio X, e à qual, como é óbvio, aderimos plenamente). Ora, ao tratar da virtude da obediência, o Doutor Comum naturalmente a põe abaixo das virtudes teologais (fé, esperança e caridade), porque, ainda se tratando de obediência a Deus, que implica o desapego dos bens criados e o desprezo da vontade própria, a obediência não é senão um meio para aquela adesão. Corretamente, portanto, afirma a tese adversária que “as virtudes teologais sobrepujam todas as virtudes morais, porque concernem diretamente a Deus, enquanto estas concernem apenas ao meio mais adequado para nosso fim último, que é Deus mesmo. E, se é verdade que entre as virtudes morais a obediência ressalta, justamente por implicar o desprezo do maior dos bens (a vontade própria), isso em nada muda o fato de que a obediência é uma virtude subalterna, que depende da mesma subordinação às virtudes mais altas para que ela própria seja virtude. Faltando essa subordinação, deixará a obediência de ser virtude, e se mudará em vício”. Sucede, porém, que a fé a que a obediência deve subordinar-se depende, para sua certeza, da própria autoridade do magistério da Igreja enquanto regra próxima. Logo, a virtude da obediência só se mudará em vício ou se se ordenar a um Magistério que deixe de comprometer sua autoridade enquanto infalivelmente assistida pelo Espírito Santo, ou se se ordenar anterior ou preferentemente a outra autoridade, a saber, a autoridade política, com o que se rompe a devida e essencial subordinação do temporal ao espiritual. E, com efeito, ambas as coisas ocorreram desde o começo da ruína da Cristandade até o Concílio Vaticano II, mas aquela em decorrência desta, o que porém não consegue perceber quem defenda a tese de Pacheco Salles: porque, como vimos suficientemente, para sustentar sua conclusão sedevacantista, ela opera tanto uma reconstrução ideal da história quanto um recorte da doutrina dos doutores da Igreja, especialmente Santo Tomás de Aquino, e do próprio magistério da Igreja. Se assim não fosse, não se vê como se coadunariam a tese adversária de que o magistério da Igreja não pode ter sobre o fiel católico senão caráter de persuasão e a seguinte declaração magisterial (cujo teor também se encontra em numerosíssimos outros documentos do magistério e na totalidade da obra dos doutores da Igreja):

● “Por conseguinte, Nós declaramos, dizemos e definimos que é absolutamente necessário para a salvação de qualquer criatura humana ser submissa ao pontífice romano” (Bonifácio VIII, Bula Unam sanctam, 18 de novembro de 1302).

11) Em resposta ao 11, deve-se dizer que, segundo o visto nas primeiras partes deste artigo, o processo de que resultou o Concílio Vaticano II não é o indicado por Pacheco Salles, nem pela conclusão decorrente de sua tese, a saber: “Com uma cristandade inerme, ou seja, destituída do sensus fidei, que é a razão formal da autoridade e pois da legitimidade da Sede de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo inimigo – e a partir desse momento estará propriamente vacante.” Já se mostrou a insustentabilidade daquela premissa, restando porém por refutar a conclusão mesma de sedevacância, que é o que faremos ao longo da refutação da Tese de Cassiciacum e da dos sedevacantistas que se agarram, para defender sua tese, sobretudo à Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV.[2]

(Continua, com a exposição e o começo da refutação da Tese de Cassiciacum.)


[1] Para a Tese de Cassiciacum, cf. a revista Sodalitium, especialmente a série “La Papauté matérielle”, ed. francesa, nos 46, 48 e 49, e a “Entrevista a Monseñor Guérard des Lauriers”, no 13.

[2] Repita-se, uma vez mais: não dizemos que Pacheco Salles sustente o sedevacantismo em A Figura deste Mundo. Mas dizemos que é precisamente do argumento esgrimido nessa obra que se valem muitos sedevacantistas isolados. Cf. nota 6 da primeira seção do artigo.

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