terça-feira, 11 de novembro de 2008

As três vias e as três conversões - Reginald Garrigou Lagrange

Nota: Clique aqui para ler o primeiro texto e aqui para ver o segundo.

Capítulo V

Características de cada fase da vida espiritual

 

3) A fase dos perfeitos

Qual será o estado da alma dos perfeitos depois desta purifica­ção que, para eles, foi como uma terceira conversão? Eles conhecem a Deus de um modo como que experimental e quase contínuo; não somente nas horas de oração ou do ofício divino, mas ainda no meio das ocupações exteriores, jamais esquecem a presença de Deus. Enquanto no início o homem, ainda egoísta, pensa constantemente em si mesmo e sem perceber, reduz tudo a si, o perfeito pensa constantemente em Deus, na sua glória, na salvação das almas e instintivamente para aí faz tudo convergir. A razão disso está em que ele não contempla mais a Deus somente no espelho das coisas sensíveis, das parábolas ou dos mistérios da vida de Cristo, atitude que não pode durar o inteiro espaço de cada dia; mas na penumbra da fé ele con­templa a bondade divina em si mesma, um pouco assim como vemos constantemente a luz difusa que nos circunda e de cima ilumina to­das as coisas. É, segundo a terminologia de Dionísio, mantida por Santo Tomás (II-II q 180. A6), o movimento da contemplação, não mais direta ou em espiral, mas circular, semelhante ao vôo da águia, que depois de muito se elevar, gosta de traçar muitas vezes o mesmo círculo e planar quase imóvel, observando o horizonte.

Esta contemplação tão simples afasta as imperfeições resul­tantes da pressa natural, da busca inconsciente de si mesmo, da falta do habitual recolhimento.

Estes perfeitos se conhecem a si mesmos, não mais apenas em si, mas em Deus, seu princípio e fim; examinam-se pensando naquilo que está inscrito acerca de sua existência no livro da vida, e não cessam de ver a infinita distância que os separa de seu Criador; daí vem sua humildade. Esta contemplação quase experimental de Deus procede do dom de sabedoria, e por causa de sua simplicidade pode ser quase contínua; perdura no meio do trabalho intelectual, das conversas, das ocupações exteriores. Seria bem diferente se este conhecimento de Deus viesse da sua contemplação no espelho das parábolas ou dos mistérios do Cristo.

Em suma, como o egoísta pensando sempre em si, ama a si mesmo mal, a propósito de tudo, pelo contrário, o perfeito, com pensamento sempre em Deus, ama-O constantemente, não mais ap­enas fugindo do pecado ou imitando as virtudes de Nosso Senhor mas, como diz São Paulo; «aderindo a Ele, fruindo dEle, e deseja partir para estar sempre com Cristo» (12). É o puro amor a Deus e às almas em Deus; é o zelo apostólico, mais ardente do que nunca, mas humilde, paciente e suave. Verdadeiramente, este é o amar a Deus, não apenas «de lodo o coração, de toda a alma. de todas as forças», mas «de todo espírito», pois o perfeito não se eleva apenas de vez em quando àquela região superior de si mesmo; ao contrário, ele está estabelecido nela; está espiritualizado, sobrenaturalizado, tornou-se realmente «um adorador em espírito e em verdade». Quase sempre estas almas conservam a paz, mesmo no meio das mais penosas e imprevistas circunstâncias e muitas vezes a transmitem aos mais perturbados. Foi o que fez Santo Agostinho dizer que a beatitude dos pacíficos corresponde ao dom de sabedoria que, com a caridade, predomina nestas almas, das quais são exemplos eminentes, depois da santa alma de Cristo, a da bemaventurada Virgem Maria. ' Assim se manifesta, a nosso pensar, a legitimidade da tradicional divisão das três fases da vida espiritual como a compreenderam Santo Tomás, Santa Catarina de Sena, Tauler e São João da Cruz. A passagem de uma fase para a outra se explica muito logicamente pela necessidade de uma purificação que, de fato, aparece mais ou menos clara. Não existem quadros artificialmente justapostos de forma mecânica, é um desenvolvimento vital, onde cada etapa tem sua razão de ser. Se nem sempre a coisa foi assim compreendida, é porque não foram notados devidamente os defeitos dos principiantes, mesmo os mais generosos, nem também os dos avançados; daí que não se percebe a necessidade de uma segunda e mesmo de uma terceira conversão; esquece-se que cada uma destas purificações necessárias é mais ou menos bem suportada, com o que se introduz a alma num degrau mais ou menos perfeito da via iluminativa ou da via unitiva (13).

Quem não der bastante atenção à necessidade destas purificações, não poderá ter uma ideia justa do que deve ser o estado da alma dos avançados e dos perfeitos. Sobre a necessidade de uma nova conversão o próprio São Paulo falava aos Colosssenses (3,10): «Não digais mentiras entre vós, porque já vos despojastes do vel­ho homem com suas obras e vos revestistes do novo homem, que renovando-se sem cessar segundo a imagem daquele que o criou, atinge então o conhecimento perfeito... Revesti-vos principalmente da caridade, que é o vínculo da perfeição».

 

Notas:

1) lI-IIae q.24 a.9. Na verdade, responderia eu ao Sr. R Bremond, esta adesão a Deus. ato direto que está no princípio dos atos deduzidos e meditados do perfeito, contém a solução do problema do puro amor a Deus conciliado com um legítimo amor de si mesmo, pois é verdadeiramente se amar em Deus, amando-o mais do que a si mesmo.

2) O carmelita Phílippe de Ia Sainte Trinité, no prólogo de sua Summa Theologiae Mysticae (edição de 1874, pg. 17), também coloca a purificação passiva dos sentidos como transição entre a via purgativa e a via iluminativa, e a purificação passiva do espírito, como disposição à via unitiva. Nisto, como em muitas outras coisas. Th. VaJlgornera O. P. o seguiu e até o copiou literalmente. Antoine du Saint Esprit O.C.D. fez o mesmo, resumindo-o em seu Directorium Mysticum.

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