quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Carta a um Sceptico

Transcrevemos aqui uma das Cartas de Dom Jaime Balmes tiradas do seguinte livro: Cartas a Um Sceptico em Materia de Religião por D. Jayme Balmes. Traducção do Hespanhol por A. A. Leal. Livraria Internacional, Porto, Braga e Rio de Janeiro, 1876. Mantemos a grafia da época. Caso nos fosse perguntado poderiamos acrescenter o seguinte argumento: estando no limbo as crianças estão num bom lugar, se tivessem vivido mais e sido batizadas quem garante que não iriam, já adultas, viver uma vida ruim e terminariam no inferno? Confiemos na Providência que tudo dispõe da melhor forma. Ao texto:

 

Carta Decima Quinta

Meu caro amigo

A objecção que o senhor me propõe na sua ultima, apesar de não ser tão forte como o senhor imagina, confesso que, considerada superficialmente, é bastante especiosa. Tem além d’isso uma circumstancia particular, e é que se funda, ao que parece, em um principio de justiça. Isto a torna muito mais perigosa, porque o homem tem tão profundamente gravados em sua alma os principios e sentimentos de justiça, que quando póde apoiar-se n’elles crê-se authorisado para atacar tudo.

Desde já convenho com o senhor em que a justiça e a religião não podem ser inimigas, e que uma crença, fosse qual fosse, que se achasse em opposição com os eternos principios de justiça, deveria ser repellida por falsa. Admittida uma das bases sobre que o senhor levantava a difficuldade, não posso admittir a força da propria difficuldade pela simples razão de que se funda além d’isso em supposições completamente gratuitas. Não sei em que cathecismo o senhor leu que o dogma catholico ensina que as creanças mortas sem baptismo são atormentadas para sempre com o fogo do inferno; pela minha parte confesso francamente que não tinha noticia da existencia de tal dogma e que pela mesma razão não me havia podido causar o horror que o senhor experimenta. Isto me faz suppôr que o senhor se encontra com tantos outros na maior confussão d’ideas sobre esta importante e delicada materia, indicando-me a necessidade de aclarar-lh’as alguma cousa, da maneira que m’o consinta a ligeireza de discutir a que me condemna a incessante immobilidade do meu adversário.

É absolutamente falso que a Igreja ensine como dogma de fé que as creanças mortas sem baptismo sejam castigadas com o supplicio do fogo, nem com alguma outra pena chamada de sentido. Basta abrir as obras dos theologos para vêr reconhecido por todos elles que a pena de sentido applicada ás creanças não é dogma de fé; e antes pelo contrario sustentam aquelles em sua immensa maioria a opinião opposta. Ser-me-ia facil adduzir innumeraveis textos para provar esta asseveração; porém julgo-o inutil porque o senhor póde assegurar-se da verdade d’este facto empregando um momento em percorrer os indices das principaes obras theologicas e vêr as opiniões que alli se consignam.

Não ignoro que teem havido authores respeitaveis que opinam em favor da pena de sentido; porém repito que estes são em numero muito escasso, e é contra elles a immensa maioria; e sobretudo insisto em que a opinião d’aquelles authores não é um dogma da Igreja, e por conseguinte regeito as inculpações que com este motivo se dirigem contra a fé catholica. Por sabio, por santo que seja um doutor da Igreja, a sua opinião não é authoridade bastante para fundar um dogma; da doutrina d’um author ao ensino da Igreja vão a mesma distancia que da doutrina d’um homem ao ensino de Deus.

Para os catholicos a authoridade da Igreja é infallivel porque tem assegurada a assistencia do Espirito Santo; a esta authoridade recorremos em todas as nossas duvidas e difficuldades, e n’isto é que se cifra a principal differença entre nós e os protestantes. Elles appellam para o espirito privado, que por fim vem a dar nas cavillações da fraca razão, ou nas suggestões do orgulho; nós appellamos para o Espirito Divino, manifestado pela intervenção estabelecida pelo proprio Deus, que á a authoridade da Igreja.

Perguntar-me-á o senhor qual é o destino d’essas creanças privadas da gloria e não castigadas com pena de sentido; e achará talvez que a difficuldade renasce, posto que sob forma menos terrivel, pelo mero facto de não lhes outhorgar a eterna bemaventurança. Á primeira vista parece uma cousa muito dura que as creanças, incapazes como são de peccado actual, tenham de ser excluidas da gloria por não terem sido mergulhadas nas aguas regeneradoras de baptismo; mas aprofundando a questão, descobre-se que não ha n’isto injustiça nem dureza, mas sim e unicamente o resultado d’uma ordem de cousas que Deus pôde estabelecer e de que ninguem tem direito de queixar-se.

A felicidade eterna que, segundo o dogma catholico, consiste na visão intuitiva de Deus não é natural ao homem nem a nenhuma creatura. É um estado sobrenatural a que não podemos chegar senão com auxilios sobrenaturaes. Deus, sem ser injusto nem duro, podia não haver elevado nenhum creatura á visão beatifica, estabelecendo premios d’uma ordem puramente natural, já n’esta vida, já na outra. D’onde resulta que o estar em certo numero de creaturas privadas da visão beatifica não argue injustiça nem dureza nos decretos de Deus, pois que se teria podido verificar a mesma cousa com todos os seres creados; e até se deveria ter verificado se a infinita bondade do Creador não os tivesse querido levantar a um estado superior á natureza dos mesmos.

Já estou adivinhando que se me opporá a réplica de que a situação das cousas é agora muito differente, e que se é verdade que a privação da visão beatifica não haveria sido uma pena para as creaturas que não tivessem tido noticia d’ella, o é agora e muito dolorosa para os que se veem excluidos da mesma. Concordo que esta privação é uma pena do peccado original; mas não em que seja tão dolorosa como se quer suppôr. Para affirmar este ultimo caso seria preciso determinar até que ponto conhecem a privação os mesmos que a padecem e saber a disposição em que se encontram para lamentar a perda d’um bem, que com o baptismo teriam podido conseguir.

S. Thomaz observa com muita opportunidade que ha grande differença entre o effeito que deve produzir nas creanças a falta da visão beatifica e o que causa aos condemnados. N’estes houve livre arbitrio, com o qual, ajudados da graça, puderam merecer a gloria eterna; aquellas acharam-se fóra d’esta vida antes do uso da razão; a estes foi possivel alcançar aquillo de que se encontram privados: não assim as primeiras, que sem o concurso de sua liberdade, se viram trasladadas a outro mundo no qual não ha os meios para merecer a eterna bemaventurança. As creanças mortas sem baptismo acham-se em um caso similhante aos que nascem em uma condição inferior, em que não lhes é possivel gozar de certas vantagens sociaes de que desfructam outros mais afortunados. Esta differença não os afflige, e resignam-se sem difficuldade ao estado que lhes ha cabido em sorte.

No tocante ao conhecimento que as creanças não baptisadas teem de sua situação é provavel que nem sequer conheçam que haja tal visão beatifica; assim não podem affligir-se por não a possuir. É esta a opinião de S. Thomaz que affirma que estas creanças teem noticia da felicidade em geral, mas não em especial, e por tanto não lhes peza havel-a perdido: “Cognocunt quidem beatitudinem in generali, secundum communem rationem, non autem in speciali, ideo de ejus amissione non dolent.”

O estar separadas para sempre de Deus parece que ha de ser uma afflição muito grande para estas creanças, porque não podendo suppôr-se privadas de todo conhecimento do seu Author, hão de ter um vivo desejo de vêl-O e hão de sentir uma pena profunda ao achar-se faltas do dito bem para toda eternidade. Este argumento suppõe o mesmo facto que se negou mais acima, a saber, que as creanças teem conhecimento da ordem sobrenatural. S. Thomaz nega-o redondamente e diz que estão separadas de Deus perpetuamente pela perda da gloria que ignoram, porém não em quanto á participação dos bens naturaes que conhecem: “pueri in originali peccato decedentes suna quidem separati a Deo perpetuo, quantum ad ammissionem gloriae quam ignorant: non tamem quantum ad participationem naturalium bonorum, quae cognoscunt.

Alguns theologos, entre os quase se conta Ambrozio Catharino, teem chegado a affirmar que estas creanças sentem uma especie de bemaventurança natural, a qual não explicam em que consiste pela simples razão de n’estas materias só se poder discorrer por conjecturas. Sem embargo, não deixarei d’observar que esta doutrina não foi condemnada pela Igreja, sendo para notar que o mesmo S. Thomaz, tão medido em todas as suas palavras, não deixa de dizer que estas creanças se unem a Deus pela participação dos bens naturaes, e assim poderão alegrar-se tambem dos mesmos com conhecimento e amor natural: “sibi (Deo) conjungentur per participationem naturalium bonorum; et ita etiam de ipso gandere poterunt naturali cognitione et dilectione.” (2. D. 33. Q. 2. art. 2 ad. 5.)

Já vê o senhor que a cousa não é tão horrivel como imaginava, e que a Igreja não se compraz em pintar-nos entregues a espantosos tormentos as creanças que tiverem a desgraça de não receber o baptismo. A pena que estas creanças padecem compara-a mui opportunamente S. Thomaz à que soffrem os que, estando ausentes, são despojados de seus bens, mas ignorando-o elles. Com esta explicação se concilia a realidade da pena com a nenhuma afflicção do que a padece; e eis-nos aqui conduzidos a um ponto em que permanece salvo o dogma do peccado original e o da pena que segue, sem nos vermos precisados a imaginar um numero immenso de creanças atormentadas por toda a eternidade, quando pela sua parte não teem podido exercer nenhum acto pelo qual o merecessem.

Até aqui tenho-me cingido á defeza do dogma catholico e á exposição das doutrinas dos theologos, e creio ter manifestado que, limitando-se o primeiro á simples privação da visão beatifica, por effeito do peccado original não apagado pelo baptismo, está muito longe d’achar-se em contradicção com os principios de justiça, nem traz comsigo a pretendida dureza que o sehor lhe imputa. Como é natural, os theologos teem-se aproveitado d’esta latitude para emittir varias opiniões mais ou menos fundadas, sobre as quaes é difficil formar um juizo acertado, faltando-nos noticias que só a revelação poderia proporcionar-nos. Como quer que seja, parece muito rasoavel a doutrina de S. Thomaz de que as creanças poderão ter um conhecimento e amor de Deus na ordem puramente natural, sendo-lhes dado gozar d’estes bens que lhes outorgou o Creador. Sendo creaturas intelligentes e livres, não podemos suppol-as privadas do exercicio de suas faculdades, pois do contrario seria preciso considerar seus espiritos como substancias inertes; não pela sua natureza, senão por estarem ligados suas potencias da ordem intellectual e moral. E como por outra parte não se admitte que soffram pena de sentido e se affirma que não se queixem da de damno, é preciso conceder-lhes as affeições que me todo o ser resultam naturalmente do exercicio de suas faculdades. Fico sendo seu affectuosissimo, etc.

J.B.

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