sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O Direito de Educar

Padre Leonel Franca S.J.


A família

Um problema de ordem jurídica prende e orienta, pela sua própria natureza, qualquer reforma profunda da educação. A quem compete, título primário e essencial, o direito de educar? Eis uma questão fundamental, destas que não se podem abandonar à arbitrariedade e às flutuações da política. Onde se acham em jogo os interesses espirituais das almas, a formação moral dos caracteres, a preparação civil dos futuros cidadãos, aí a família, o Estado, a Igreja têm incontestável direito a uma intervenção inelutável. E só na harmonização racional e sincera de todos esses direitos se encontrará a chave de uma solução justa, pacífica e duradoura.
Na ordem natural, o direito primário e inalienável de educar pertença à família. É a sua própria razão de ser; destinada, pela natureza invencível e irreformável das coisas, à conservação da espécie, compete-lhe como finalidade própria criar e formar os novos homens que asseguram a vida perene da humanidade, na imortalidade das gerações que se sucedem. Autores de uma vida incompleta, os pais têm o dever estrito de leva-la ao complemento de sua perfeição natural. Ao direito essencial da criança (à) uma educação completa, física, intelectual, moral e religiosa, - corresponde, em quem lhe deu a existência, o dever e portanto também o direito e lha ministrar. A geração sem a educação seria essencialmente uma obra falha, imperfeita, sem finalidade.
Um é complemente espontâneo da outra. A premeditada por Deus comunicada imediatamente à família, é, ao mesmo tempo, o princípio da vida e o título natural do direito de formar para a vida. Aos pais incumbe, portanto, a responsabilidade indeclinável de subministrar, aos que chamaram à existência, com a alimentação e cuidados indispensáveis ao desenvolvimento do organismo, o patrimônio intelectual e moral que lhes é necessário para bem viver.
Percorram-se os códigos civis de todas as nações cultas e neles se encontrará explicitamente consagrado o direito-dever inerente à família de educar a prole. Leia-se a nova Constituição Alemã e ai se verá o art. 120, que, em formula lapidar, doutrina: “a educação física, moral e social da prole é dever supremo e direito natural do pais, sobre cuja execução vela o Estado.” Revolvam-se as sentenças recentes do Supremo Tribunal Federal da grande República Norte-Americana e entre elas se achará, expressamente excluído, como contrário às teorias fundamentais da liberdade sobre que repousa a constituição dos Estados Unidos, “o poder geral do Estado de dar uma educação uniforme às crianças, constrangendo-as a aceitar a instrução só dos professores públicos. A criança não é uma simples criatura do Estado. Os que a alimentam e lhes dirigem os destinos têm o direito, acompanhado do alto dever, de prepará-los para o desempenho de outras obrigações.”
É preciso ir à Rússia soviética para encontrar a negação cínica e funesta de um direito unanimemente reconhecido pelo consenso das nações civilizadas.

A escola
No desempenho desta nobre missão, raras vezes são insuficientes os recursos de cada família isolada. Surge então a escola como seu prolongamento natural. Pela natureza de sua origem, é ela uma instituição complementar da família, destinada a ajudar, mitigar e suprir a sua ação educativa. É só em nome dos pais e com a autoridade por eles delegada que qualquer educador pode, na ordem natural, exercer as funções do seu magistério.
Aos pais, portanto, assiste, antes de tudo, o direito de optar livremente pela escola de sua confiança, a que melhor corresponde ao seu ideal educativo e às exigências da própria consciência moral ou religiosa. Onde fosse livre ao Estado ou a qualquer pessoa, física ou moral, impor às famílias uma determinada escola ai se consumaria a violação da mais intangível das liberdades. Forçar o limiar dos lares, arrancar dos braços de seus pais uma criança de 6 ou 8 anos para enclausura-la numa escola onde se nega o que a educação doméstica afirmou, e lhe destrói o que ela construiu, é a mais intolerável opressão das consciências.
E com a violação das liberdades espirituais, a ruína do trabalho educador. Só o respeito à ordem natural das coisas pode assegurar à obra pedagógica a sua indispensável unidade, e com a unidade, o segredo de sua eficácia admitir que a escola pode imprimir à sua pedagogia uma orientação filosófica, moral e religiosa oposta à das famílias, afirmar que aos seus professores seja lícito transformar-se de colaboradores em adversários da educação paterna, é opor em antítese funesta, duas instituições complementares que a razão exige colaborem na convergência pacífica da mais imperturbável harmonia. Escola e família, inspiradas me princípios espirituais opostos, destroem-se reciprocamente com incomensurável prejuízo da criança. Na sua alma infantil, o antagonismo das duas influências, ambas prolongadas, profundas ambas, acabará por produzir o irreparável dano da ruptura psicológica do equilíbrio interior. Na inteligência, o ceticismo e a indiferença, na vontade o desanimo e a falta de energias indispensáveis aos sacrifícios do dever. Consciência em ideal e sem convicções, sem coesão e sem virilidade, vitimas amanhã entregues a tirania da primeira paixão violenta – eis os frutos naturais da oposição desastrosa entre a escola e ela.

O Estado e a Escola
Da certeza dessas conclusões se inferem outrossim as relações jurídicas que existem entre a família e a escola. Escolas pode abri-las qualquer particular – indivíduo ou associação, que para isso possua, com a competência técnica e a idoneidade moral, a confiança das famílias. Escolas pode e deve abri-las o Estado todas as vezes que as iniciativas particulares forem insuficiente às exigências da instrução. Preenchendo, porém, esta função supletiva, o Estado não se transforma em educador em detrimento dos direitos naturais e inalienáveis da família. Nada mais oposto à sua razão de ser essencial. Encarregado de velar pelo bem comum, sua missão é tutelar o exercício do direito, não usurpa-lo, é defender a liberdade dos cidadãos não confisca-la no açambarcamento de um monopólio asfixiante.
Mais ainda que na ordem econômica, os direitos do Estado são limitados em matéria educativa, pela própria natureza da sua missão. Entre a finalidade do Estado e a da educação existe, não diremos o antagonismo, mas heteronomia. A função do Estado é assegurar com a ordem jurídica um ambiente favorável, ao desenvolvimento das faculdades individuais; não lhe compete, porém, dirigir imediatamente este desenvolvimento, condicionado por uma concepção da vida que o poder público, sem degenerar em tirania, não pode impor à consciência dos cidadãos. Pela sua origem, pela sua natureza, pelos seus destinos, o homem possui um valor moral que lhe é próprio e inauferível. É uma pessoa com a sua dignidade inviolável; transforma-la em simples meio de que o Estado pode dispor discricionariamente é rebaixá-lo à inferioridade de uma coisa e simultaneamente levar o poder civil, a idolatria de uma apoteose pagã, às alturas de um absoluto, irresponsável e onipotente. O direito soberano é e não pode deixar de ser um direito-função, como se exprimem os juristas modernos, isto é, um meio de realizar o bem comum, no grupo social aqui preside e portanto um direito condicional e limitado, pelo respeito aos direitos imperecíveis da generalidade humana.
Pô-la em dúvida é ratificar o despotismo ilimitado.
Outra é a finalidade da educação; essa, sim, visa elevar o homem à plenitude do desenvolvimento de todas as suas virtualidades. Seu objetivo é um bem eminentemente pessoal. E, por isso, toda pedagogia é em própria essência separável de um concepção filosófico-religiosa da vida.
Há, portanto, uma diferença profunda de finalidades, uma heteronomia que inibe ao Estado avocar a si, numa usurpação injustificável, o monopólio da educação. E o erro ponto jurídico seria ainda agravado com uma insuficiência psicológica. Todos sabemos o complexo de sentimentos naturais que condicionam a evolução normal da criança e não se substituem pela superficialidade técnica externa. É no educador uma harmonia equilibrada de firmeza e ternura que se concretizam nos dois aspectos, paterno e materno, intimamente unidos, da autoridade doméstica. É no educando a confiança e a docilidade que, em relação aos pais, se encontra nos filhos com a espontaneidade de um instinto. Sem estes recursos, que se permitem atingir as profundidades da consciência, substitui-se a verdadeira evolução interior, orgânica e vital, do homem por um artificialismo de processos ineficazes.
Ao Estado, solicito de velar pelos interesses da educação, incumbe, portanto, o dever de respeitar as suas condições naturais, auxiliando, não eliminando, a família na sua insubstituível função educadora. Estimule, facilite, ampare as iniciativas particulares a que deve a pedagogia o melhor dos seus progressos, e a educação popular a mais benfazeja das suas contribuições. Onde forem insuficientes os recursos individuais, abra e multiplique os seus estabelecimentos de ensino que venham por à disposição fácil e acessível das famílias os meios indispensáveis ao cumprimento de sua grande missão social. As escolas oficiais, assim instituídas, por mais numerosas que sejam, não podem representar uma agressão dos poderes públicos contra os direitos intangíveis dos cidadãos. Representam apenas o desempenho leal e inteligente desta função de assistência social pela qual os governos, cônscios de sua missão, subministram aos indivíduos e aos grupos naturais, anteriores e superiores ao Estado, os meios necessários à realização das suas finalidades.

Laicidade
As escolas oficiais não podem, portanto, nem devem ser leigas, se por leiga se entende a escola que dos seus programas exclui o ensino religioso.
Quando, por motivos extracientíficos e extrapedagógicos, se tentou justificar a laicização do ensino público, afirmou-se que a missão da escola era ensinar e não educar, subministrar conhecimentos sem elevar-se à formação das almas. Toda pedagogia moderna, reatando o fio de uma longa tradição, partida por interesses políticos menos dignos, revolta-s contra semelhante concepção acanhada e mesquinha da escola. Toda pedagogia é inseparável de uma visão integral da vida. Impossível presidir à evolução do homem sem conhecer-lhe a natureza e a finalidade. E toda visão integral da vida que situa e orienta o homem na universalidade das coisas, envolve, por si mesma, uma solução religiosa da existência. Não há como romper as relações essenciais que ligam a pedagogia ao ensino religioso. “Toda educação, escreve um dos mestres da pedagogia alemã, será sempre suportada por uma mentalidade religiosa, não só porque visa a alma na sua totalidade senão também pela sua atitude em relação à vida no seu conjunto.”
“A educação, afirma por sua vez um dos grandes pensadores ingleses contemporâneos, é essencialmente religiosa” (WHITEHEAD, The aims of Education, 1929, p.23) Retirar o ensino religioso das escolas seria torna-las essencialmente incapazes de educar. O conhecimento seguro e desenvolvido da religião não representa só uma riqueza da inteligência, é ainda um elemento indispensável de formação humana.
Insurge-se ainda, e com direito, a pedagogia mais moderna contra esta separação artificial entre a escola e a vida, entre o ambiente educativo e o ambiente social que o enquadra. A criança continua a viver, nos anos de estudo, a sua vida, espontânea e completa, como a vivia no lar, como a viverá mais tarde na sociedade. Interpor um cordão sanitário que vede a entrada da vida religiosa na escola, é isolá-la com um artificialismo de estufa, de toda a atmosfera circundante, é desconhecer a profundidade e complexidade da sua vida real, é impossibilitar uma colaboração sincera e completa das atividades escolares com as instituições domésticas e sociais.
A formação moral e social do homem não poderá deixar de ressentir-se deste erro profundo de longínquas e inevitáveis conseqüências. O lacismo escola já fez as suas presas. Os estudos estatísticos mais insuspeitos e mais exatos ai estão na demonstração com a correlação constante de causa e efeito, entre a laicização do ensino e o progresso da criminalidade. Quando FOUILLE averiguou que de 100 menores citados aos tribunais de Paris, apenas dois haviam saído de escolas religiosas, evidenciou, de modo incontrastável a qualquer mediana sinceridade, o grande flagelo que para um povo representa a laicização inconsiderada dos seus estabelecimentos de ensino.
São, pois, os mais altos interesses da ordem social, de par com as imprescritíveis exigências de uma sã pedagogia, que reclamam a instrução religiosa nas escolas. Ora, o Estado não pode impor aos cidadãos, sem lhes violar a liberdade de consciência, uma concepção espiritual da vida. A César falece a competência de uma autoridade doutrinal em matéria religiosa. Atribuir-lhe fôra sancionar a mais insuportável das tiranias e colocar a orientação das consciências e o patrimônio das tradições religiosas e morais de um povo à mercê dos partidos dominantes e das flutuações da política incerta e volúvel.
A solução do importante problema encontramo-la no princípio fundamental do direito escolar assim formulado pela constituição alemã no art. 146: “Leve-se na maior consideração possível a vontade das pessoas a quem pertence o direito de educação.” A lei de 15 de julho de 1921 assim demonstra no seu artigo 1º o princípio constitucional: “Sobre a educação religiosa da criança decide o livre acordo dos pais na medida em que lhes assistem o direito e o dever de cuidar da pessoa da criança.”
A laicização da escola pública é, pois, um atentado contra a liberdade espiritual das famílias e uma injustiça na aplicação dos dinheiros públicos, recolhidos, sob formas de imposto, de todos os cidadãos e empregados, num serviço de utilidade universal, de modo a torná-lo inaproveitável à maioria dos que dele terão o direito de se beneficiar.
Para conciliar estas exigências do respeito aos direitos espirituais do povo e de uma reta distribuição da justiça social, excogitaram-se, nos diferentes países civilizados, vários regimes escolares, cuja adaptação ao nosso meio deveria ser objeto de estudos mais profundos e inspirados na mais absoluta liberdade. Adotando o regime de repartição proporcional do orçamento da instrução pública pelas escolas oficiais e particulares ou fundando escolas confessionais para os diferentes credos religiosos em que se acha dividida a população, resolveram já com maior ou menor felicidade a questão do ensino religioso quase todas as nações cultas: Alemanha, Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Holanda, Suécia, Noruega, Dinamarca, Itália, Tcheco-Eslováquia, Polônia, Áustria, Hungria, Rumânia e Grécia.
Somos, portanto, contra a laicidade do ensino. A exigência de uma articulação essencial entre a formação do homem e uma concepção da vida, a indispensável colaboração entre a escola e o lar, a unidade prescindível da obra educativa, proclamados pela mais moderna pedagogia; a esterilidade moral do laicismo evidenciada pela observação psicológica e pela estatística; o respeito à liberdade de consciência e uma justa aplicação dos dinheiros públicos, que as ciências sociais reclamam como condições essenciais de uma paz sólida e duradoura; a conservação do patrimônio cristão, moral e religioso de um povo, de sua alma espiritual através das gerações, que a história proclama como essencial à continuidade e grandeza de sua vida; as lições irrecusáveis da legislação comparada – unem-se, numa admirável convergência de luzes, para proclamar o laicismo um regime escolar antipedagógico e anti-social, injusto e estéril, sectário e funesto.
Assegurados estes princípios fundamentais, que prendem as suas raízes na própria natureza humana, nas condições do seu desenvolvimento integral, respeito à sua dignidade inviolável de pessoa, abrimos os braços acolhedores a todas as inovações pedagógicas aconselhadas por uma ciência mais adiantada e sancionadas por uma experiência mais profunda e completa. Na grande efervescência de renovação pedagógica dos nossos dias, distinguimos, nitidamente, a questão dos fins ou do ideal educativo e a dos métodos ou meios empregados para realizá-lo. Todos os progressos reais que às ciências e à arte de educar pode trazer a contribuição da biologia, da psicologia e das ciências sociais, não só os aceitamos com reconhecimento mais provamo-los com entusiasmo.
Na questão, porém, do ideal educativo cuja determinação, por sua natureza, transcende os métodos e o alcance das ciências experimentais, reivindicamos o direito de uma crítica serena e elevada. Aos que tentam estabelecer vínculos artificiais de solidariedade entre a modernidade sadia dos métodos pedagógicos e a antiguidade sempre renascente de concepções materialistas ou naturalistas da vida, respondemos que estas idéias nem são novas, nem representam conquistas da ciência. Valem o que vale a fragilidade dos sistemas filosóficos de que são, em pedagogia, a repercussão funesta.
Na determinação do ideal educativo reclamamos a integridade de uma compreensão mais vasta. Não ouvimos só a higiene ou a biologia; consultamos, sem exclusivismos nem parcialidades, todas as ciências que têm o direito de dizer uma palavra acerca do homem, da nobreza de suas origens e da sublimidade dos seus destinos.
Sem esta visão superior e completa da existência humana, na universilidade de suas relações, só poderá haver, em educação, exageros unilaterais, supervalorização estéril da técnica, mutilações na totalidade da vida, a desfecharem por último um imenso fracasso pedagógico, em que, de envolta com a paz, o equilíbrio e a felicidade dos indivíduos, se compromete o grande patrimônio espiritual da civilização.


Conclusão
A nossa mais séria aspiração é trabalhar por uma profunda reforma pedagógica no Brasil. A escola liberal com o seu laicismo incoerente e estéril, sem ideais e sem convicções, mais talvez que para nenhum outro foi para o nosso país uma experiência desastrosa. Com a difusão do ensino não se elevou, antes baixou o padrão da nossa moralidade individual, doméstica e social. Urge reformar, mas reformar radicalmente, sem reincidir nos mesmos erros que viciaram a primeira tentativa e iriam tornar uma segunda experiência mais dolorosa que a primeira. Uma reforma pedagógica sim; mais inspirada numa compreensão mais perfeita e num equilíbrio mais justo de todos os elementos de uma questão vital para os nossos destinos. Conciliação harmônica e leal de todos os direitos; colaboração indispensável e sincera de todas as autoridades pedagógicas, - civis e espirituais; articulação inteligente da escola com a família e a sociedade; adaptação dos métodos mais aperfeiçoados sem a violência dos abalos sísmicos nem o mimetismo dos povos sem tradições; apelo à colaboração precisa da iniciativa particular, e estimulada, promovida e amparada pelos poderes públicos; - respeito na obra educativa à jerarquia essencial dos valores humanos, eis alguns dos pontos capitais do nosso programa. O desconhecimento ou descaso de qualquer destas exigências comprometeria a eficácia de todo esforço em prol da elevação da nossa cultura. Só a sua realização harmoniosa e integral lograra transformar a nossa escola neste ambiente puro, tranqüilo e elevado em que a personalidade, num desenvolvimento homogêneo, equilibrado e vital, poderá atingir a plenitude de sua perfeição humana, ideal supremo da verdadeira educação.

(originalmente em FRANCA, Leonel. A formação da Personalidade. Rio de Janeiro: AGIR, 1954, p. 54-64)

Nenhum comentário:

Postagens populares